segunda-feira, 4 de março de 2013

Sob meu critério (Parte 02) – Marcelo Silva

Sigo pela rua no sentido do transito, passo por três ruas e viro à direita em uma rua que dá acesso à avenida principal. Do lado direito um imenso muro de uma antiga fábrica, todo pontilhado por enormes arvores, e do lado esquerdo vários salões comerciais antigos e também abandonados. Levou semanas, mas consegui acesso a um dos salões e troquei sua velha fechadura, durante semanas eu fui esvaziando o lixo do local e jogando nos salões vizinhos, puxei uma ligação elétrica clandestina, pintei as paredes, o teto e o piso de branco, e aos poucos fui trazendo tudo que iria precisar. Esvaziei minha bolsa junto com o que já estava lá: clorofórmio, estiletes, algemas, acessórios eróticos, água, comida, roupas de cama, um colchão e mais um sem-número de tralhas que compunham item-a-item o meu plano.

Nas parede, parafusei argolas de metal, assim como no chão ao redor do colchão. Me certifiquei várias vezes que qualquer som não seria ouvido. Liguei o som várias vezes em alto volume e saia para a rua deserta... NADA! Mesmo que alguém fosse louco o suficiente para passar a pé por aquela rua à noite, mesmo assim o som lá de dentro era praticamente inaudível do lado de fora.


Abro um pacote de cigarros e retiro um maço, acendo e confiro cada detalhe, cada item; cada canto daquele lugar que em breve seria minha masmorra particular, onde iria sub-julgar e dominar aquela mulher intrigante, aquele objeto de desejo. Pego biscoitos e como vagarosamente, escutando o silencio absoluto do lugar. De algum canto era possível escutar o barulho de água pingando e ecoando pelo vazio. Alguns pombos fizeram morada dentro do forro e por vezes seu bater de asas quebrava o silencio do ambiente, só alguns caminhões pesados que conseguiam se fazer ouvir quando passavam pela rua em busca de acesso à avenida.

Tomo água, molho meu rosto e noto que minhas têmporas latejam, prendo as cordas nas argolas do chão e da parede, checo cada nó e penduro laços de seda junto das cordas. No meio do salão existe um balcão de concreto da altura de meu umbigo, nele também parafusei algumas argolas, forrei ele com uma lona plástica emborrachada e por cima joguei um lençol de cetim vermelho. Espalhei velas vermelhas pelo resto do balcão e mais outras ao redor do colchão e pelos cantos do salão. Os incensos foram estrategicamente deixados próximo ao colchão.

Eu começo a pensar nela, na sua pele, no sabor de seu sexo, na textura de sua jugular, no cheiro que deve emanar de seus lábios íntimos quando excitados. Percebo que sou tomado por uma ereção absurda, todo meu corpo lateja, cada célula de meu corpo deseja ardentemente possuí-la. São chamas invisíveis que nascem entre minhas pernas e se espalham por todo meu ser. Minha masculinidade ereta e firme dói, querendo ser liberta das roupas que a contem. Atravesso o salão e ponho MP3 em cima do balcão, Philip Glass começa a despejar sua obra “closing” por todo ambiente. A musica minimalista e repetitiva me põe em alerta novamente. Coloco um forro no colchão e por cima cubro com lençóis de seda negra e espalho as pétalas colhidas pela manhã.

Já passa do meio dia, pelas minhas lembranças, eu já sei que ela almoça no trabalho e que depois costuma sair andando até uma padaria próxima onde se delicia sempre com a mesma coisa: uma torta de limão e um capuchinno grande, porem ela nunca come o croissant doce que acompanha o café. Procuro minha arma secreta e a localizo: vários tubos ocos e finos, com suas extremidades pontiagudas e vários deles soldados entre sim. Um pneu de qualquer tipo secaria imediatamente após passar por cima de um desses. Eu tenho mais de trinta comigo. Pego um sobretudo de couro negro com vários bolsos grande e começo a me preparar, Clorofórmio e lenço no bolso externo direito, chaves das portas no bolso externo esquerdo, luvas no bolso interno. Testo a porta da frente mais uma vez para ver se está devidamente lubrificada para que minha entrada furtiva seja o mais rápida possível. Philip Glass começa mais uma musica, desta vez é “Island”. Eu pauso a música. Quero que seja essa trilha sonora que vai marcar o despertar dela. É uma musica tensa, monocordica, até meio assustadora. É isso que quero para quebrar as correntes que a prendem a esse mundo, quero que o medo invada suas veias e que sua adrenalina exploda a cada movimento meu, a cada corte nas algemas que a prendem a esse mundo falso que eu aprendi a conseguir enxergar. Ela também vai enxergar, sinto que sim.

A masmorra está completamente organizada e a espera de sua vítima, de MINHA presa. Olho as horas e o ponteiro marca 15:45, as 17:00 ela sai e como todos os dias, ira novamente na padaria comprar pão fresco, tomar uma água mineral com gás, observando as pessoas na padaria e os pedestres através da vitrine. É nestes momentos que de longe percebo que ela já sabe que não faz parte deste mundo, seu olhar sempre em busca de algum sinal que lhe mostre a saída. Sempre o mesmo ritual: por a bolsa em cima da mesa, sentar-se e por o pão ao lado da bolsa, abrir a tampa da garrafa plástica, e observar as pessoas, então fecha os olhos (sempre) e dá um gole, seus olhos se apertam como se o gás da água lhe incomodasse. Então ela abre os olhos e continua a procurar algo que ela ainda não sabe, mas que deseja ardentemente. Sempre vai acelerando os goles, como se fosse sendo tomada por uma irritação. Ela procura mas não acha o que busca. Ela ainda não sabe o que quer. Quando termina sua água e sua pesquisa, ela volta andando para o carro e vai embora. Porem hoje isso não vai acontecer, não posso permitir que ela continue assim. Desta vez eu estarei em seu encalço.

O tempo começa a se arrastar, o calor está insuportável, mas não quero ligar o ventilador, isso estragaria os finos desenhos que fiz com os vincos dos lençóis e levaria embora as pétalas que espalhei organizadamente, meticolosamente num obsessivo padrão interno meu. O nervosismo toma conta de mim, preciso me controlar pois um passo em falso e poderei perder a chance de libertá-la. Acendo mais um cigarro, fumo encostado na parede. Não quero macular nada com um toque desajeitado. Tudo tem que estar perfeito para receber minha doce gazela. Meu covil a aguarda.

O alarme de celular toca, Olho para o relógio e ele marca 16:40. Está na hora!

Saio, fecho a porta de aço e caminho em direção ao outro lado da rua, mentalmente imagino o tempo que o pneu levaria para esvaziar completamente e espalho alguns dos grampos bem próximos a sarjeta. Sigo no sentido contrario ao transito da rua. Neste momento, alguns carros começam a utilizar a via de encontro à avenida. Nada com que se preocupar, do lado direito tem muitas arvores baixas que os motoristas evitam passar embaixo. Viro a esquerda seguindo o muro da velha fabrica, e após duas quadras entro novamente a esquerda e Avisto a padaria, entro e peço um café expresso, preto e sem açúcar. A padaria fervilha de clientes, pego meu café e me dirijo a uma das mesas bem no fundo, ao lado da vitrine onde ela sempre se senta antes de ir embora.

17:00, ela está vindo... Meu café está pela metade ainda. Minhas mãos suam quando penso na penugem que adorna sua nuca, minha língua estremece com a proximidade do momento onde vou sorver cada gota de suor e gozo de minha doce menina-mulher. De repente o lugar se ilumina com sua entrada, alguns rapazes no balcão se cutucam e fazem sinal para observá-la. Ela esta com os cabelos preso em um coque, quase posso sentir sua pele de seda. Ele se dirige ao extremo oposto do balcão, se distanciando dos rapazes. Ela sabe que é provocante! Mas no seu intimo ela procura algo mais que apenas sexo.

A padaria está movimentada, dezenas de pessoas entram e saem, são apenas gado seguindo a manada. Uma atendente esguia e de cabelos vermelhos se dirige a ela do outro lado do balcão e pergunta se será o mesmo de sempre, ela sorri e acena que sim. Ela é retraída perto de muita gente junta. Agora sentada de costas para mim no banco do balcão, me permite observar sua cintura e seu quadril desenhado pelos deuses. Então ela pega seu pão e sua água e se levanta, começo a olhar para a rua pela vitrine mas na verdade estou acompanhando seus passo pelo reflexo do vidro. Escuto ela puxar a cadeira, o barulho da bolsa sendo colocada em cima da mesa, o som do pão se acomodando dentro do saco e finalmente o barulho da garrafa sendo aberta e deixando escapar o gás encarcerado lá dentro. Mas algo sai do normal, seu celular começa a tocar e pelo reflexo a vejo identificar a chamada e fazer uma cara de enfado, ela atende e parece ser o marido do outro lado da linha. Ela fala que está na padaria e que depois irá para a academia e com um tom de voz irritado fala que não sabe se a que horas irá chegar, pois pretende passar na casa de uma amiga. Ela desliga o celular e quase que violentamente o joga em cima da mesa. Eu me viro e fico esperando que ela me note, mas ela olha para a vitrine atrás de mim sem se dar conta de minha presença bem na sua frente. Eu começo a me desesperar e suar, o ar-condicionado da padaria é um nada perante o calor que me calcina a pele por dentro. No terceiro gole de água quando ela resolve voltar sua atenção para as pessoas dentro da padaria ela me nota e sorri. E que sorriso!!!! Interpreto meu papel e me levanto e vou cumprimentá-la, ela pergunta se não quero sentar e eu pergunto se não a incomodaria, ela simplesmente aponta para a cadeira à frente dela.

Para meu desespero ela solta os cabelos e os deixar cair naturalmente, agora posso ver a bela pintura que é sua face. A margem de seus cabelos em sua testa formam um pequeno V, seus cabelos são volumosos e escondem suas orelhas, sua sobrancelha é forte e definida criando olhares simplesmente avassaladores. Seu nariz é afilado e levemente arrebitado, fazendo com que suas fossas nasais sejam ovaladas. Ao redor de sua boca, existem linhas fortes, de quem passa muito tempo sem sorrir, marcas de uma vida de desejos contidos e não-realizados. Seu rosto é lateralmente proeminente na altura dos lábios e vai se afinando até chegar no seu queixo levemente projetado para a frente. Seus lábios são finos, porém apetitosos, e seus dentes são harmonicamente dispostos em um sorriso que deixa transparecer a mulher-leoa que até aquele momento foi aprisionada dentro dela, pelas correntes do medo, da indiferença e da solidão.

Ela fala algo sobre o clima, depois sobre o gato e finalmente me pergunta se consegui achar o endereço, respondo afirmativamente e olho para o relógio como se estivesse com pressa, ela nota e continua a conversar coisas amenas até que termina sua água e fala que vai embora, eu falo que também estou de saída e nos levantamos juntos, e ao passar pelos rapazes lanço um olhar que provocou a inquietação deles. Ela agora estava sob minhas garras e meu olhar deixou bem claro para eles que o melhor era nem olharem para ela. Na calçada ela perguntou para que lado eu ia e falei que iria voltar pela frente do trabalho dela e ela falou com um sorriso alegre e infantil: “Vamos juntos então, meu carro esta estacionado na frente!”

Saímos pela calçada conversando e quando paramos em frente ao seu carro, me despedi com um acendo e sai andando o mais vagarosamente possível, ela se demora entre abrir o carro, por o cinto, desligar o alarme e ligar o carro, quando anda 2 metros percebe algo errado e tenta avançar novamente, sem que ela perceba me aproximo do vidro do carro e bato nele com as costas da mão, ela é tomada por um grande susto e arregala os olhos e fica sem entender o porque de eu estar apontando para a parte de trás do carro, ela abre o vidro e meio indignada fala que eu a assustei, peço desculpas e falo que seu pneu está vazio.

Ela murmura alguns palavrões baixinho e desce do carro com tanta raiva que a porta me atinge e por pouco não arrebenta o vidro de clorofórmio em meu bolso. Ele se desculpa e vai ver o pneu vazio, ela chuta o pneu com força e pragueja alto. Eu me preparo, aperto o vidro por cima do casaco com força, observo o movimento da rua e quando me preparo para o bote, escuto passos atrás de mim, era um dos vizinhos que veio em sua ajuda. Perguntou se precisava de auxilio e eu falei que iria trocar o pneu para ela. Mas ele insiste em ajudar e fica próximo. Começo a trocar o pneu enquanto ele tagarela sem parar com ela. Já começo a pensar em uma saída, em outro dia; em outra oportunidade. Mas quando vou pegar o estepe, meu sorriso se escancara de orelha a orelha, estava vazio! Quando informo isso a ela, ela pragueja, e começa a xingar alguém de filho da puta, lazarento e outros adjetivos raivosos. Imediatamente pega o celular e liga para alguém, que presumo seja o marido, e começam uma discussão sobre ele não ter deixado o estepe para arrumar a mais de 15 dias. Depois de alguns minutos discutindo a relação por telefone, ela desliga e pergunta o que fazer. Eu falo que ela pode ficar no trabalho esperando, pois seria mais seguro do que ficar na rua e eu pegaria um dos pneus e levaria em uma borracharia perto. Mais uma vez o vizinho se intrometeu e falou que ia pegar o carro para me levar. Fomos em silencio e após 20 minutos estávamos de volta e pus o pneu no lugar mas tive o cuidado de deixar os parafusos frouxos. Finalmente o intruso se retirou e pude agir.

Falei que seria melhor ela levar imediatamente o outro pneu para a borracharia, evitando assim que acontecesse de ficar sem nenhum novamente. E falei que se ela quisesse eu poderia acompanhar ela, afinal uma borracharia não era ambiente para uma pessoa tão distinta. Ela aceitou e perguntou se não seria muito incomodo, ignorei e sabendo que ela iria para o lugar do motorista, fui para a outra porta. Ao começar a andar ela escutou barulhos estranhos (eram os parafusos soltos) e desci para ver, inventei que o pneu parecia estar montado errado e pedi para tentar guiar o carro até a borracharia pois tinha mais experiência que ela nessas situações. Trocamos de lugar e tudo voltou a correr dentro do planejado. Andando vagarosamente pelas ruas escuras, de longe avistei a porta do salão e antes dela, a alguns metros de distancia pude ver o brilho dos grampos no chão. Fingi que desviava de algo e fui em direção às arvores, mediatamente escutamos um estouro e paramos. Ela sem entender desceu e quando olhou para o pneu dianteiro do lado do motorista totalmente vazio, esbravejou um grande e sonoro “puta que pariu!”, aquela seria sua ultima frase neste mundo que não era o dela. Agora começaria uma nova vida. Neste momento eu já estava posicionando atrás dela com o lenço já encharcado e a segurei e pus o lenço em seu rosto... Ela se debatia, tentava se soltar, me dava cotoveladas, mas em alguns segundos foi amolecendo e desfalecendo. Rapidamente a joguei dentro do carro e atravessei a rua, e rápido como um gatuno abri a porta do salão e voltei como um raio para o carro, mesmo com o pneu furado entrei e imediatamente cerrei as portas por dentro.
(Continua)

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