sexta-feira, 17 de julho de 2009

...Em busca da musa... (01)

De todas as flores que brotam de meu cerne poético, apenas algumas são colhidas, deixando a grande maioria a morrer pensa nos galhos. De todas as flores não colhidas, não brotarão brotos plenos de crescimento.

Eis a roseira! Ainda vive! Mas eis também a frieza da jardinagem que a ela releva o nada!

E a roseira prenhe de amor vai morrendo, findando-se pela falta de solo fértil onde o que brota de seu interior possa encontrar ressonância e inflar-se do adubo-amor.

Eis a roseira que já não mais brota...

Eis o poeta que já não mais palpita...

Eis... eu...

Sinto que o dia-a-dia atual me deixa cada vez mais solapado, tomado e relegado a planos mais terrenos, menos criativos, mais materiais, menos românticos.

As pessoas são más! Mesmo achando que estão fazendo o bem.

Pois necessita-se de um mínimo de aurora.

Precisa-se de uma musa que ao menos represente algo de belo, puro e (in)tangível

É necessária uma aurora!

Para mim, bastaria a réstia da aurora por baixo dos pesados portões de minha prisão.

Se ao menos eu pudesse enxergar a luz que me foi tirada, se ao menos eu pudesse tocar a brisa que não chega nas masmorras que hoje vivo; se ao menos pudesse escutar o canto dos pássaros sem as grades para filtrá-lo. Já seria muito.

Só queria um amor, e na busca, busquei longe; e no encontro, vi-me tolhido.

Faz-se imediata a presença de um mínimo de reconhecimento, um mínimo de atenção.

Olho-me no espelho e a dor maior é ver que não sou 100% imperfeito, que se fuçar bastante, tem algo de bom por baixo de toda a lama.

Se minha musa escolhida não me completa, que eu tenha outra! (nem que seja imaginária)

Assim criarei a escultura da mulher buscada, a tela do amor perdido; a poesia da vida sonhada.

Assim, serei feliz dentro da caverna onde as sombras substituirão a realidade, serei feliz por trás dos véus que me protegerão das palavras frias e da opacidade do amor circunstancial. Assim talvez no sonho da mulher amada eu encontre a paz que a muito perdi.

Marcelo Silva
17/07/2009
Atordoado, porém atento!
...Hoje e sempre...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 05

Acordei com o cheiro forte de amoníaco que exalava de um lenço que ele pos próximo ao meu rosto para me acordar. Uma dor lacinante corroia pelo meu queixo.

O riso havia sumido da cara dele, visivelmente preocupado. Perguntou se eu estava bem e me apoiou me levando até o lavabulo e esperou que eu lavasse meu rosto para depois me passar uma caixa de primeiros socorros. Apesar de pequeno, o corte não parava de sangrar nem de latejar. Comprimi ele com força com uma gaze e me sentei.

- eu falei que precisava de algo para beber.
- ok, vamos até lá em cima.

Subimos as escadas e ele entrou no quarto e pediu para que eu o seguisse, abriu a porta do guarda-roupa e separou uma muda de roupa e me apontou o banheiro. Tomei um longo e relaxante banho morno, quase fervendo, e mudei de roupa. Sai do quarto e quando entrei na sala parecia que era outro lugar. Ou eu havia me demorado horas no banho, ou ele tinha uma empregada escondida dentro do armário, pois a sala estava quase organizada e quase limpa. Notando meu espanto, ele falou:


- como você resolveu demorar muito no banho, transferi parte da bagunça para a cozinha.... agora ela está impenetrável!

Em cima da mesa, duas cervejas geladas, o gelo se formava por fora das garrafas levantando uma leve fumaça gélida. Já era madrugada da segunda-feira e o banho havia começado a fazer minha consciência e sanidade voltarem. Sentei e rapidamente tomei a cerveja, logo avisando que iria embora imediatamente. Ele deu de ombros, entrou no quarto e trouxe uma sacola com minhas roupas sujas dentro e me entregou. Perguntou quando eu voltaria e respondi que em breve, que este final de semana tinha sido muito intenso.

Naquele momento eu poderia jurar que havia um medo da solidão em suas perguntas. Parecia que éramos amigos a décadas e que agora eu iria embora para nunca mais voltar. E era isso que eu tinha em mente!

Peguei minhas coisas e fui saindo, ele me acompanhou até a porta e ao chegar no grande portão da frente, pos o braço por sobre meus ombros e falou:

Tivemos um grande final de semana hein?
- ô!!!
- espero que tenha gostado, realmente.

O mais estranho, foi que tinha sinceridade plena nas palavras dele.

- sim, foi bom. Não diria que gostei, mas foi no mínimo excitante.

O mais assustador, foi que tinha sinceridade plena nas minhas palavras também.

Entrei no meu carro, pus o cinto e respirei fundo. Quando o portão se abriu, parecia que todo o universo se abria em liberdade só para mim.

Acelerei vagarosamente, acenando pela janela e dando uma pequena buzinada. Na madrugada alta, os faróis do velho ford del rey rasgavam a escuridão montando vultos e sombras nas arvores da beira da estrada. Os pios de uma coruja solitária quebraram o ruído do motor e resolvi ligar o rádio. Os auto falantes começaram a despejar musicas antigas românticas, me fazendo relaxar. Meus dedos estavam doendo de tanto apertar o volante, só que eu não havia notado essa situação. Após vários minutos, venci a distancia entre a casa dele e a rodovia. No asfalto acelerei mais ainda até entrar na cidade. Pensei em parar em um bar , mas eu precisava urgentemente chegar em casa.

Na chegada, eu estava tão exausto que quase me esqueci de fechar o portão da garagem, cambaleei para a sala e sem ligar a luz, desabei no sofá já com o controle remoto da TV na mão. A TV pintou a sala com suas luzes e mudando de canal procurei algo para me distrair. Parei no canal de desenhos animados onde passava “jonnhy bravo” e deitei a cabeça na almofada que havia ganhado de minha irmã, bordada com a frase “...Para um grande homem...”. Quando na penumbra da TV li a frase, dei um riso forçado e nervoso, seguido de um resmungo a atirei a almofada longe, quase acertando o abajur de vime em cima da estante no canto da sala.

Me aninhei no sofá e imediatamente dormi.

Desde muito jovem eu tinha sonhos onde eu sabia que estava sonhando, mas mesmo assim não conseguia parar de seguir o script onírico. Mas mesmo em alguns pesadelos eu sabia que não era real. Alem disso, sempre fui muito cético, e sempre achei que os sonhos não tinham nada de especial. No máximo é o nosso subconsciente querendo nos pregar peças, montando ilusões a partir do que já temos dentro de nossa mente. Mas mesmo assim sempre era bom quando eu tinha esses sonhos “conscientes”

Desta vez eu estava ao lado de meu falecido pai, e caminhávamos pela avenida à noite. As luzes amarelas de vapor de mercúrio desenhavam nossas sombras pelo chão e falávamos sobre trabalho, mulheres, economia e tantos outros assuntos que pareciam não ter fim. Eu sabia que era um sonho, mas era maravilhoso sentir o perfume de sabonete phebo que exalava daquela figura mágica. Suas feições sérias porem simpática me fazia sorrir. As ruas estavam desertas e comentei com ele sobre isso.

- muito quieta esta noite não papai?
- é, só mais uma noite
- até amanhecer! – retruquei brincando.
- meu filho: se conselho fosse bom, não se dava. Se vendia. E CARO! Deus escreve certo por linhas tortas, e eu sei que não devo duvidar da sabedoria divina, mas mesmo assim não acho que a noite esteja para brincadeiras.
- mas o que houve?
- quando você acordar amanhã, talvez você não se lembre mais dessa nossa caminhada, mas espero que se lembre que aqui se faz, aqui se paga.

Eu sabia que era um sonho, que aquilo era apenas minha consciência fazendo sua parte em me torturar, mas a ilusão era ótima, e o cheiro de meu pai, a cor morena de sua pele e o som calmo e tranqüilo de sua voz eram caros demais para que eu quebrasse aquela imagem. Fiz de conta que realmente era ele e continuei falando de outras coisas, querendo mudar de assunto. Mas minha mente ainda se lembrava muito bem de meu pai e ele falou:

- não quer mais falar sobre isso?
- não sei... Gostaria que isso aqui fosse a realidade e que tudo que passei tivesse sido a ilusão. Mas acho que vou ter que conviver com isso pelo resto de minha vida.
- é meu filho... Pelo menos você ainda tem uma vida, ao contrario daquele homem que você matou.
- não tive escolha, fui envolvido numa situação que nem em duzentos anos eu poderia imaginar.
- sempre temos escolhas. Se não quisesse, não teria feito nada.

Tentei fugir, retrucando e atacando ele

- o senhor também teve oportunidades de escolher, sua vida poderia ter sido muito mais fácil
- eu escolhi o melhor, e se meu fim foi doloroso, eu pelo menos pude dormir todos os dias com a cabeça tranqüila. Mesmo sozinho e aleijado, meus últimos dias foram iguais a todos os dias de minha vida: tendo a certeza de ter feito o certo.
- ...
- nunca faltei um dia de trabalho, nunca roubei ninguém, nunca abandonei minha família, nunca deixei faltar nada aos meus filhos e nunca fiquei devendo nada a ninguém, nem favor!

Isso era uma verdade absoluta, ele todos os dias acordava antes de todo mundo e ia para sua oficina, onde passava o dia cumprindo seus deveres e sendo um exemplo de homem. Só deixou de trabalhar depois que a diabetes lhe arrancou uma perna, e dois ou três anos depois lhe levou a segunda perna. Mas mesmo reduzido a “meio-homem” como ele gostava de brincar com a sua própria situação, sempre manteve a aura de simplicidade e felicidade. Sempre resignado com o que a vida podia lhe dar ou tirar. lembro quando de sua segunda amputação quando o medico lhe informou que iria amputar sua outra perna e ele responde:

- doutor, o medico aqui é o senhor. Se o senhor ta falando que tem que tirar, fazer o que? Não vou mais jogar futebol mesmo.

Ainda hoje, quando olho suas fotos eu sinto toda a grandeza daquele homem que eu havia recriado em minha mente como a mais dolorosa forma de auto-punição. Continuamos a caminhar na avenida deserta e eu olhava para as suas pernas intactas e pus o braço por cima dele e continuamos a caminhar abraçados. Ele me perguntava sobre a cidade, sobre os velhos amigos (quase todos já falecidos) e relembrávamos nossas estórias. Sempre fomos mais amigos que pai e filho. Saímos para beber, pescar, viajar e conversar.

Com um enorme animal aninhado na garganta, que rasgava minha goela com tenazes de caranguejo, eu com a voz embargada perguntei:

- será que eu não poderia ficar o resto da eternidade aqui? Conversando com o senhor, caminhando e relembrando todos os nossos momentos?
- não. Infelizmente para você, sua caminhada ainda será longa e sofrida. Mas você sempre terá escolhas melhores. Você pode sempre escolher o melhor caminho.
- mas o caminho que escolhi, agora me trará um eterno arrependimento. Acho que nunca mais terei paz. E não tenho a mínima intenção nem coragem de assumir tudo o que fiz. Acho que é melhor que eu sofra sozinho sem ter que fazer mais ninguém sofrer.
- é mais fácil se apoiar nos outros. O que você não quer é ter que enfrentar a justiça pelo que fez.
- também...
- mas existe uma outra justiça meu filho. Dessa ninguém foge.
- mas podemos tentar, né?
- sim, mas não vai conseguir.

O dia começava a clarear e do outro lado da rua, um orelhão não parava de tocar.

- meu filho, Minha condução está chegando. Já é tarde e tenho que ir.
- quando nos veremos de novo?

Ele me olhou com o sorriso franco de sempre, acariciou meus cabelos e falou:

- não sei, sou apenas um sonho que você criou.

O telefone aumentara muito de volume e quando olhei para o outro lado da rua, começaram a surgir dezenas de pessoas. Todas sem rostos e se dirigindo para o nosso lado da rua. Um pavor imenso tomou conta de mim e instintivamente eu procurei a mão de meu pai para me proteger, mas só havia um vazio no lugar onde ele estava. Tentei correr, mas meus passos eram lentos e pesados. Eu tentava me concentrar que tudo aquilo era um sonho mas o medo aumentava a cada inspiração que eu dava. O som do telefone era ensurdecedor. As pessoas que se aproximavam vinham caminha do tranqüilamente, por não terem rostos, não aparentavam nenhuma intenção, mas no fundo eu sabia que queria me pegar. Quanto mais eu tentava correr mais ficava lento e com dificuldade de respirar. Das esquinas à frente surgiam mais deles, nas janelas eles pareciam brotar e das portas que se abriam saiam mais e mais deles. Quando me vi completamente cercados por eles, gritei e o grito acompanhou minha volta à realidade.

Acordei gritando, chorando e suando como um pai-de-santo, o telefone da mesa não parava de tocar. Não consegui atender. Apenas corri para o banheiro e liguei o chuveiro. A água morna parecia arrancar minha pele enquanto o telefone não parava de berrar na sala. Mesmo demorando muito no banho, pois tive que tratar do corte do queixo que ainda incomodava muito, quando saí o telefone ainda tocava. Tirei ele da tomada e fui para a cozinha tomar água, minha garganta estava seca e eu não conseguia respirar fundo sem ter uma enorme vontade de chorar.

Voltei para a sala e lá na parede estava o retrato de meu pai, tirei ele da parede e fiquei vários minutos fitando aquela imagem. Sentado no sofá, notei que a TV ainda estava ligada e mudei de canal para ouvir as noticias. Parecia ter sido combinado, mas a reportagem que estava passando era sobre a misteriosa estória da noite anterior, onde dois homens em um barco haviam impedido um estupro e a policia estava atrás deles com hipóteses de que eles eram comparsas, rivais em busca de vingança ou outras teses que enchiam o gosto dos noticiários ávidos por uma boa estória. Demorou muito tempo para que um repórter levantasse a possibilidade de ter sido apenas alguém que vendo a cena pudesse ter agido para salvar a mulher. O delegado prontamente respondeu:

- é uma hipótese, mas nos dias de hoje ninguém mias se envolve com essas coisas. Alem do mais, o que fazia dois cidadãos de bem naquela hora e naquele bairro andando de barco? E ainda por cima armados?

Exclamei um sonoro “VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!” e desliguei a TV. Eu estava num misto de medo e de indignação. Haviam testemunhas! Sabiam que estávamos por ali. E se tivessem nos vistos? E se nos seguiram? E por que ninguém aceitava a hipótese VERDADEIRA que aquilo foi para salvar a mulher?

Troquei de roupa e de carro fui para o trabalho. Na época eu havia recuperado a velha oficina automotiva de meu pai e a havia transformado em uma oficina de motocicletas. Estacionei o carro embaixo da sombra arvore da esquina e fui me aproximando. Ao chegar mais perto, senti minhas pernas desfalecerem e um calor percorrer meu corpo saindo dos calcanhares até a nuca. Fiquei completamente arrepiado quando vi uma viatura da policia na frente da oficina conversando com o rapaz que me ajudava. Pensei em dar meia volta e sair, mas ele me apontou e falou bem alto:

- olha ele ali!

- filho da puta! – pensei. Parei no meio da calçada sem ter mais o que pensar. Os dois policiais vieram em minha direção e eu não deixava de observar suas armas e suas algemas penduradas em seus cintos. Confirmaram meu nome e pediram para acompanhá-los até a delegacia. Perguntei sobre o que se tratava, mas apenas falaram que no distrito policial seria tudo explicado. Pedi para ir ate a oficina pegar meus documentos originais e consentiram, ao entrar na oficina meu olhar fuzilou meu ajudante, que naquele momento esboçou um murmúrio de desculpas. Peguei meus documentos e falei que iria ligar para meu advogado. Os policiais se olharam e estranharam. Sem entender o porque da reação deles, perguntei:

- não estou sendo preso?
- e porque estaríamos lhe prendendo?

Pensei rápido e achei melhor não falar mais nada, talvez estivesse querendo arrancar uma confissão ali mesmo.

- não sei! Chego no meu trabalho e tem dois policiais que me pedem para segui-los até a delegacia sem querer explicar nada. O que devo pensar?
- fique calmo senhor, apenas queremos sua ajuda para resolver uma duvida nossa.
- dúvida? Sobre o que?
- na delegacia será melhor explicado. Mas não: o senhor não esta sendo preso.

Pediram para que eu fosse no meu carro que eles iriam na frente. Ao sair na frente da oficina, uma pequena multidão já havia se formado do outro lado da rua, curiosos por saber o porque daquela situação. Dentro de minha cabeça eu já imaginava que aquilo tudo seria o inicio de um terrível pesadelo. Já imaginava as manchetes nos jornais, a surpresa de meus amigos e parentes; a vergonha de meu pai se estivesse vivo.

Segui a viatura que se movia lentamente, talvez não querendo me perder de vista. Chegamos à delegacia e o delegado que logo cedo eu vira na TV me aguardava em sua mesa. Era um sujeito bem alinhado em seu terno preto, barba perfeitamente feita, um grosso cordão de ouro no pescoço e um anel de advogado no dedo, que de tão grande mais parecia uma soqueira. Na parede atrás dele, ao lado de uma foto do governador do estado estavam vários diplomas de cursos, universidades e escolas.

Metodicamente, ele se ajeitou na cadeira enquanto eu estava parado na sua porta, ladeado pelos dois policias. Vagarosamente ele arrumou os objetos em cima da mesa, educadamente pediu um café pelo telefone, ajeitou o terno e só depois de todo esse ritual que pareceu durar séculos, me apontou a cadeira e pediu para me sentar. Confirmou minha identidade e perguntou:

- o senhor sabe por que esta aqui?
- ao senhor, não tenho a menor idéia.
- o senhor poderia me informar onde esteve nos últimos dois dias?

Pronto! Eu havia sido pego! Nada mais a fazer. Talvez eu devesse mesmo ligar para um advogado. Mas resolvi não demonstrar o nervosismo, apesar de estar suando em bicas e gaguejando a cada silaba que falava.

- estive com um amigo, ele pode confirmar!
- e esse seu amigo por um acaso do destino esteve com o senhor na manha do sábado?
- sim, estivemos juntos todo o final de semana.
- o senhor sabe a definição de crime senhor?
- sim, mas o que eu fiz?
- o senhor sabe que existem leis neste país e que é o meu dever fazer cumpri-las?
- sim, lógico que sim, mas o que eu fiz?
- então o senhor deve saber também que é minha obrigação levar os que cometem esses crimes para serem apresentados à justiça, certo?
- gostaria de ligar para meu advogado.
- então o senhor até já tem um advogado?
- Doutor, conheço meus direitos e já que nem sei do que estou sendo acusado, gostaria da presença de meu advogado.
- e o que o senhor vai dizer para ele?

O cerco se apertava cada vez mais, evidentemente ele queria mais detalhes sobre algo que não sabia por completo. Resolvi respirar fundo e respondi:

- que estou sendo acusado de algo que nem sei do que se trata, que fui tirando de meu trabalho e trazido a sua presença para um interrogatório que não tem nenhum sentido!
- então agora o senhor que me ensinar meu trabalho?
- de forma alguma! Apenas gostaria que o senhor me explicasse o que está acontecendo. Só isso!
- ESCUTE UMA COISA – Berrou ele enquanto deu um tapa na mesa que fez voar varias folhas de papel e que me fez engolir seco o que parecia ser uma bola de sinuca tal qual a pressão que exerceu em meu esôfago – EU CONHECI SEU PAI! ELE ERA MUITO AMIGO DO MEU PAI, E SÓ POR ISSO QUE NÃO LHE METO NA CADEIA AGORA MESMO! O SENHOR NÃO SABIA QUE CAÇAR DENTRO DE UMA PROPRIEDADE PARTICULAR É CRIME?
- hãããã??? – fiz uma cara tão de espantando que até ele estranhou
- na manhã do ultimo sábado, o senhor foi visto com outra pessoa não identificada, caçando dentro de uma propriedade particular. A placa do seu carro foi anotada e saiba o senhor que só não vou lhe prender agora mesmo porque por sorte sua, o seu carro ainda está no nome de seu finado pai, e por conhecer ele tão bem não vou lhe dar ordem de prisão imediata! O senhor pensa que está onde? Num puteiro?
- mil desculpas doutor, eu realmente não sabia que era uma propriedade particular. Jamais eu iria entrar na propriedade de alguém sem pedir autorização. Por favor, me desculpe.
- desculpar? Desculpar um cacete! O senhor dê graças a deus que o dono não quis fazer um boletim de ocorrência! Apenas pediu para que eu lhe intimasse para que nunca mais o senhor ponha os pés lá dentro! Quanto ao seu amigo, nem quero saber quem é esse outro cidadão!

Quando o delegado falou sobre ele, senti um pavor tomar conta de mim. E se ele quisesse que eu fosse até a casa dele? O que poderia acontecer se aquele louco me visse chegar com a policia? Sem nem deixar eu me recuperar, o delegado começou a me passar um sermão aos gritos, temperados com socos que dava na mesa. O finíssimo cidadão que a pouco educadamente pediu um café, empoado com toda a dignidade do mundo agora era um carrasco nazista que vociferava em minha direção, arremessando perdigotos que se espalhavam na minha cara. Após tomar o maior esporro de minha vida e prometer nunca mais na minha vida ir caçar novamente, ele terminou a audiência:

- tirem esse filho de uma puta da minha frente! Se eu ver ele de novo por aqui, juro que lhe dou uma surra que quando ele acordar no hospital, vira evangélico no outro dia! Já não bastasse ter que procurar os filhos da puta que atiraram no tarado lá na beira do rio, ainda tenho que dar sermão num cavalo velho desses!

Eu saí de lá me sentindo o pior dos homens, mas lá no fundo eu respirava aliviado em saber que não tinha sido pego por toda a loucura que ocorreu no final de semana. Entrei no meu carro e passei uma boa meia hora debruçado no volante, tentando absorver aquela visita ao distrito. Quando voltei para a oficina, a multidão que estava quando saí se reduziu a alguns vizinhos e amigos. Entrei e expliquei tudo a eles. Foi quando meu ajudante falou que passou boa parte da manhã tentando me ligar para avisar do que estava acontecendo, tentando me contar que o dono da propriedade já tinha ligado na oficina (que ainda usava o mesmo numero de telefone de quando era de meu pai, assim como o carro que mantive no nome dele pelo tempo que deu. Como uma lembrança) para esculhambar com minha cara e para falar que o delegado iria ter uma conversa comigo.. o coitado do meu ajudante estava quase chorando e pedindo desculpas. Respirei fundo e fui me trocar. Pus meu macacão e tentei começar a trabalhar, mas tudo aquilo não saia de minha mente. Passei o dia sem conseguir fazer nada.

A noite, já em casa eu dormi logo cedo pois queria descansar, mas minha mente tinha outros planos...

(Continua)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Minha mão esquerda (04)

O que diferencia um corpo vivo de um corpo morto? Ora! O numero de átomos é o mesmo! Até o peso permanece!

Talvez a diferença seja apenas externa. Na dor dos que ficam, no vazio dos aposentos; na ausência dos sons e dos cheiros.

Talvez a diferença interna ocorra então não no corpo inerte, e sim nos que ainda pensam estarem vivos. Um dia foi dito que “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhares é uma estatística.”.

Caminhar na matéria estando material, pesa e marca com pegadas que ficam impressas no papel da vida. Mas até onde vai essa marca no EU que sai de cena?

Será que levamos mais coisas do que deixamos? Será que levamos algo?

A morte nos toca de formas diferentes, a morte nos leva de formas diferentes, a morte tem tempos diferentes. A morte em nada é diferente!!!

Um corpo morto é exatamente igual a um corpo vivo, pois são apenas corpos.

07/07/2009

Minha mão esquerda (03)

Depois de minha morte eu vaguei pelo pó em que me converti. Definhei da carne até a terra, e enquanto os vermes se banqueteavam, minha consciência teimava em prender-se àquelas moléculas (pois ainda não conhecia a verdadeira morada atômica). Ao pó eu cheguei, e mesmo moído, deglutido e excretado, ainda existia a consciência corporal anterior. Na osmose da terra, minha poeira nadou até a superfície e alçou vôo nos ventos que me espalharam pelos mares, pelos bares; pelos lares. Quanto mais eu me dispersava, maior me sentia.

Na vastidão deste pequeno planeta, por vezes minhas partículas se reencontravam, mas juntas nada formavam. Não tinham mais a liga que um dia as uniam.

Eu fui ao fundo das fossas marianas sentindo a quilométrica pressão liquida que de pó me fez lama submarina. Cavalguei na estratosfera montado nas correntes ascendentes, que de pó me fizeram. Pousei em vulcões ativos que liqüifizeram-me os grãos e do pó fizeram-me rocha. Prostei-me sobre pastos e ingerido por ruminantes, do pó fui feito carne.

Mas foi quando caí nos olhos de uma criança, e em lagrimas fui lavado e expulso, que entendi que a infinitude da matéria encontra seu ocaso quando tem que transmutar-se, para recomeçar a ser uma nova antiga parte do universo. Foi nestas lagrimas que me libertei, deixando apenas as experiências minhas impregnadas (com infinitas outras) na memória de cada átomo que neste plano eu fui

16/06/2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Desamor

Você poderia amar alguém que não te atrai? Você se sentiria atraído por alguém que não ama? O que faz nós, criaturas imperfeitas, sentirem este aperto no peito quando encontramos pessoas especiais? O que você faria com relação a alguém que te tira o fôlego cada vez que se aproxima? Qual a sua reação ao sentir o sangue ferver nas veias ao sentir o cheiro desse alguém, mesmo esse alguém não fazendo o seu tipo?
Sinto-me perdido num labirinto de emoções desde a primeira vez que senti teu corpo junto ao meu, foi tão maravilhosamente intempestuoso, sem cobranças, sem limites, sem nada... Apenas nós dois.

Foi tão louco e certo que me assustei e fugi para sempre (sempre?).

Mas a cada reencontro nosso na rua, fica o gosto amargo da fuga, do medo e da solidão em minha boca.

Tive dezenas de mulheres, centenas de paixões; milhares de desilusões.

Mas nossa estória sobreviveu e dos escombros deste cataclismo que abalou minha vida, surgiu uma flor, e ela tem o teu nome.

Mas como te dizer que te amo?

Como confessar esta paixão por você, sendo você tão diferente do padrão estético de beleza que me move nas rotas do amor?

Como aceitar este carrossel de emoções em que sou jogado a cada vez que te vejo?

Por que sempre que estou me sentindo só, ou quando brigo com as mulheres, ou ainda quando no fim de tarde de um dia cinzento (daqueles com sabor de preguiça) quero correr para ti, atirar-me em teus braços a procura as vezes de carinho, outras vezes de sexo e prazer, e outras tantas vezes apenas a procura de você?

Eu sei, São perguntas sem respostas...

A única certeza que tenho, é de que se te encontrar mais uma vez na rua, estando os dois sozinhos, soltos e perdidos a procura de se achar, vai ser como da última vez e acabaremos um dentro do outro, se abraçando e desejando que aquele momento nunca mais se acabe.

Eu sei disso, eu tenho certeza disso; pois é mais forte do que eu, mais forte que as leis dos homens e de Deus.

Se a vida fosse mais simples... Eu apenas teria que correr para teus braços e me embriagar no cheiro oleoso de tua pele. Mas tem outras coisas, tem a família, tem os filhos; tem meu medo de enfrentar coisas simples como esta.

E agora eu tenho que partir desta cidade, desta terra para talvez nunca mais voltar. O desconhecido me chama e eu não posso mais esperar, mas antes de partir eu tinha que te falar tudo isso.

O que achas que eu deveria fazer?

Esquecer esta loucura? Transformar-me em teu escravo e amante? Jogar tudo para cima?

Também não sei, minha cara, só sei disso que até agora escrevo nestas linhas tortas e desconexas que agora você lê.

Sabe, estou me lembrando agora exatamente de teu olhar sedutor e safado, olhar de mulher no cio.

O teu andar de bailarina, sestroso e sedutor, que desliza pelas minhas retinas e marca minha mente, feito uma tatuagem.

Fecho meus olhos e vejo você nua, em meus braços com os olhos fechados e a boca semicerrada pelos espasmos de teu orgasmo.

Teus quadris a corcovear em cima de mim, como se fosse você uma amazona e eu teu animal, tua montaria de prazer.

Se faz tarde no meu agreste. O cheiro da fumaça dos carros entorpecem meus sentidos tontos de você.

Sinto o tempo passar, cada vez mais me levando para longe de você. Mas também passa o tempo, chegando a hora de minha partida.

O verde das arvores se contrapõe com o azul do céu, pintando um quadro belo que me lembra a doçura de teu sexo.

Passam corpos, rostos e sons, mas não passa você.

No ônibus, vozes falam e eu rio, pensando em você e meus pés formigam, a cabeça fica leve e sinto minhas artérias acelerarem ao ritmo de meu coração apressado. Sinto meu sangue todo indo para entre minhas pernas e fazer crescer minha masculinidade.

Nesse torpor, viajo pelas nuvens que preparam o ocaso solar no horizonte. O céu começa a adquirir um tom lilás e os primeiros morcegos ensaiam seus vôos a caça de sustento.

Quisera ser eu um deles, para invadir teu quarto durante teu sono e cravar minhas presas afiadas na carne macia de teu pescoço, beijando, sugando e misturando-me a ti.

Quisera ter asas, asas longas e brancas; feito anjo, feito demônio.Para te abraçar e alçar vôo por entre as nuvens, te levando para nosso ninho no alto da mais impossível escarpa. e lá , eu te despiria, te beijaria os pés, separaria tuas pernas e cravaria minha boca quente e sedenta em teu sexo, lambendo e bebendo teu sumo de mulher.

Morderia tua cintura e arranharia tuas costas, iria por os bicos duros e excitados de teus seios em minha boca e faria você gemer de dor e prazer ao toque sutil de minha arcada dentária.

Beijaria teu pescoço e tuas orelhas, tua nuca e tua boca.

Aos nossos beijos, eu te abraçaria com a leveza de um colibri, para acariciar tuas costas; te apertaria com a força de uma tempestade, para por toda minha porção de carne de homem, para dentro de tuas entranhas de mulher.

Bombearia minha pélvis num ritmo frenético, e a cada estocada, veria tua cabeça jogada para trás, com a boca aberta de prazer e os olhos fechados de paixão.

Ao nosso gozo, procuraríamos a boca um do outro, enfiaríamos nossos dedos em nossos cabelos e gritaríamos dentro de nossas próprias bocas. Iríamos urrar de prazer.

Ainda comigo dentro de você e com nossas pernas bambas, nos deitaríamos no chão para trocarmos carícias e palavras de carinho. Eu iria sentir teu sexo ainda a latejar e olharia para teus olhinhos a me pedir mais.

Mil vidas queria viver para que tivesse mil chances de te conhecer.

Caruaru
05 de fevereiro de 2000
Você está batendo em minha porta. Lá vamos nós novamente...

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 04

Um rosário pendia do retrovisor do Toyota bandeirantes azul, acompanhando o chacoalhar da estrada. No pára-brisa, um adesivo exclamava: “...A verdade vos libertará...”, mas por mais que tentasse imaginar essa liberdade eu não conseguia pois a verdade dos fatos recentemente ocorridos parecia me aprisionar cada vez mais.Sentado de lado na parte traseiro do veículo (reformado de forma que acomodava 17 pessoas mais as suas bagagens), eu tinha a traseira aberta do carro à minha direita.

Eu observava os ocupantes, pessoas simples e rudes. Alguns tinham a face sulcada pelo tempo e as marcas de uma vida dura. As mulheres estampavam sua simplicidade com maquiagens carregadas enquanto as crianças pareciam animais assustados sob o domínio dos pais severos. Na direção ia um homem muito loiro de olhos azuis e estatura hercúlea, só escutei a sua voz quando ele se aproximou de nós dois ainda no bar na beira do rio e perguntou se estávamos indo para a cidade. Ao sim da resposta ele perguntou qual era nossa bagagem e minha companhia apenas apontou para o barco que já havíamos retirado da água do rio.

- Ê patrão! Isso vai sair caro!
- Mas meu amigo, não perguntei o preço!
- Mas vão ficar aonde?
- Depois da cidade, onde o rio começa a entrar nela.
- Olha, não faço essa rota, no máximo posso deixa-los na rodovia.
- Pena que outra pessoa vai ganhar para fazer a mesma coisa.
- Paga adiantado?
- Você nos deixa lá antes de todos?
- Lógico que não!
- Então pagaremos quando chegarmos lá, parece-lhe justo?
- Sim, pode ser.

Uma coisa não podia ser negada NUNCA: Ele sempre teve o dom da persuassão, a lábia dele e a sua capacidade de manipular as palavras alheias beiravam ao insano.

E num movimento que parecia fácil, o motorista levantou a proa do pesado barco até deixá-lo na vertical, depois apoiou nas costas e arrastou até o carro. Com ajuda de alguns passageiros, colocou o barco em cima do carro e habilmente o amarrou lá em cima.

- Vamos embora!

Foi a última vez que escutei a sua voz.

No caminho, muitas vezes a estrada passava próximo ao rio, a simples visão do caminho d´agua que percorremos durante a noite e a madrugada me fazia arrepiar a nuca. Eu tentava desviar o olhar mas quando olhava para frente via o rosário a balançar e mais uma coleção de imagens de homens santos colados no painel do carro, além de adesivos com citações bíblicas. Nunca fui religioso, mas os ensinamentos antigos acerca do certo e errado e da vida e da morte, naquele momento me faziam sentir-se culpado. E não era para menos!

Desviar o olhar para os outros passageiros me deixava nervoso também. Suas feições simples, roupas amarrotadas e o cheiro forte da lida no campo me faziam lembrar do corpo que alvejei na noite anterior.

Olhar para frente me fazia olhar para minha doentia companhia que parecia cochilar sossegadamente , acompanhando os solavancos do caminho.

Restava-me olhar para a estrada que ia ficando para trás pela traseira aberta do carro. O chão parecia fugir rapidamente, formando uma imagem monótona e hipnótica à medida que as faixas pintadas nos asfalto iam se sucedendo uma após outra. Depois de todas as cervejas e do cansaço da noite em claro, aquele sacolejar ritmado e aquela estrada passando por mim, indo embora para o nada, me fizeram entrar num mundo de penumbras e sombras, onde adormeci e tive um sonho muito real. Não pela sensação, mas pela lembrança dos detalhes dele (coisa que raramente me lembro de meus sonhos).

No sonho, eu não havia ido até a casa dele naquele dia. Eu havia ido pescar na beira do rio, e em certo ponto do sonho eu vi o barco descendo o rio com nós dois dentro. O detalhe é que o defunto vinha nadando compassadamente atrás do barco, e cada vez que ele se virava para dar mais uma braçada eu vislumbrava seu rosto despedaçado. Ao chegar na curva do rio a estranha procissão aquática sumia, mas logo tornava a aparecer novamente na parte de cima do rio, repetindo a mesma cena infinitas vezes. Até que na última passagem, o barco tomou minha direção na margem. Mas apenas eu estava no barco e o outro passageiro agora nadava junto com o falecido. Ao chegar na margem, vi a mim mesmo desembarcar e logo depois os dois acompanhantes vierem se arrastando, como se destroçados em suas estruturas. Neste momento fui acordado pelo barulho do barco sendo retirado de cima do veiculo.

Demorei a me localizar, pois não sabia onde estava. A tarde já começava a ir embora e agora éramos apenas três naquela parte deserta da estrada junto ao rio. Eu me sentia um zumbi, desnorteado e sem noção do que estava acontecendo. Apenas ajudei a descarga e a colocação do barco no rio. Vi quando ele retirou várias notas do bolso e em silencio foi entregando uma a uma ao motorista. A cada entrega, uma troca de olhares acionava a entrega de mais uma nota, até que o motorista ficou satisfeito e sem falar uma palavra despediu-se com um aceno e foi embora. Entramos no barco, e com remadas fortes ele pôs o barco no meio do rio, que alcançou a correnteza central e saiu singrando as águas calmas.

Mais uma vez vi as aves preparando-se para se recolher por sobre as águas do rio. Parecia que o pesadelo começava novamente.

Após algumas horas, comecei a divisar os perfis da cidade ao longe. Primeiro foi um lixão, com as ratazanas se movendo rápido por entre os dejetos ali jogados, depois foi o cheiro forte dos primeiros esgotos jogados nas águas. Passamos por baixo de pontes que mostravam-nos a sujeira acumulada pelas décadas de cheias que depositavam os mais estranho objetos em suas estruturas.

Faltando alguns quilômetros para que o rio se tornasse definitivamente urbano, os primeiro casebres começaram a aparecer. Primeiro eram alguns poucos isolados, depois mais alguns e depois uma enorme favela se debruçava nas margens do rio.

Eram pessoas simples, pobres, famintas e curiosas. Olhares desconfiados e gananciosos nos fitavam enquanto eu sentia uma enorme angustia me tomar por completo. Cada um daqueles esfarrapados me remetiam ao corpo inerte na beira do rio. Era como se cada par de olhos daqueles soubessem que eu havia matado um dos seus, e que a qualquer momento eles avançariam pelas águas e tal qual um bando de piranhas ferozes fossem me destruir por completo. Encolhi-me dentro do barco e comecei a evitar olhar para as margens, mas o cheiro da favela já era o nosso terceiro passageiro rio abaixo. Um cheiro muito parecido com o que estava no corpo que encontrei abatido por mim mesmo.

Neste momento, o estranho capitão de nossa embarcação enfiou o remo na popa do barco, fazendo com que a velocidade diminuísse. Instantaneamente tomei os dois remos de suas mãos, me posicionei no centro do barco e remei, remei com todas as forças que nunca sabia que tinha, remei como se fugisse do inferno. Remei desesperadamente, pois realmente estava fugindo do inferno.

No meio do barulho dos remos na água, misturado com o palpitar do meu coração que parecia ter se mudado para meus ouvidos, escutei:

- Não adianta...
- O que não adianta?
- Por mais que alguém possa fugir de uma barata, elas ainda estarão por lá, sempre a espreita.
- Do que você esta falando agora caralho?
- De seu medo deles. Sossegue! Alem de mim, ninguém mais sabe que você matou um deles. Ninguém saberá que você pisou em uma barata. E quer saber do que mais? Muita gente também pisa nas baratas, muita gente pode até não pisar por medo ou nojo, mas com certeza apóiam os que pisam.
- Não tenho medo de baratas, alem disso acho que estamos falando de pessoas, de humanos.
- Não finja. Ontem eu não precisei de muito esforço para manipular suas opiniões e trazer a tona o que você pensa sobre essa gente. Foi fácil porque estava fácil.
- ...
- Veja só: Qual a diferença que fez ao universo o acontecimento de ontem? O que mudou no planeta? O que mudou nesta cidade?
- Minha vida inteira? Que tal isso? Até ontem eu estava em paz comigo mesmo, e hoje não consigo nem olhar para meu reflexo na água sem sentir-se sujo, com medo e com essa sensação de perseguição que parece que vai me afogar a qualquer momento.
- Isso vai passar, acredite. Você consegue se lembrar de sua primeira vez com uma mulher? Do medo antes, do medo durante, e da maravilhosa sensação do depois? Talvez já na segunda vez, você já não tenha tido medo no durante, só antes. Talvez até hoje o antes lhe amedronte um pouco pela incerteza das possibilidades futuras. Mas de qualquer forma, você não me parece o raríssimo tipo de pessoa que nunca mais foi atrás do prazer que reside entre as pernas de uma mulher. Vicia, né?
- Há! Lógico que a comparação é perfeita! Uma foda com um assassinato! Meu Deus! Eu até riria, se não fosse essa enorme vontade de mergulhar no fundo desse rio para nunca mais voltar! Você é louco! Comparar uma foda com um assassinato! Alguém por favor me acorde! A cada minuto minha vida esta ficando mais fudidamente surreal! Meu amigo: sexo sempre tem amor, romance! Mesmo quando se paga a alguém pelo sexo, existe no mínimo uma busca por prazer!

Neste momento já estávamos bem no meio da cidade, e nossa atenção se voltou para a margem direita onde alguém gritava por socorro. Na margem, quase na água; uma mulher gritava por socorro enquanto um homem a atacava, rasgando suas roupas e esbofeteando sua face. A escuridão naquele momento propiciava um esconderijo de sombras onde estavam. Dentro do barco, vi ele se abaixar e meter a mão por baixo do banco da popa e ao se levantar gritou para a margem chamando atenção do homem que imediatamente se dando conta de nossa presença levantou-se ainda com as calças arriadas no meio das pernas que ele se apressou em vesti-las desajeitada mente. Essa breve pausa foi o suficiente para que a mulher se desvencilhasse dele e saísse correndo, subindo a margem engatinhando tão rápido que instantes após já segurava o que restava das roupas e saiu correndo gritando por socorro. O homem ainda atônito virou-se e ensaiou a fuga.

Foi aí que ao me virar vi o objeto que ele procurou em algum esconderijo daquele barco que a cada instante me dava mais vontade de afastar-se dele: uma arma cujo metal negro, banhando em óleo, reluzia ao toque da luz amarela que vinha das lâmpadas de mercúrio dos postes da cidade. Não deu tempo de pensar nem de reagir. Olhei para a margem no momento exato que o estampido ecoou no ar.

No momento seguinte após o disparo, o homem pareceu ter sido por breves segundos , congelado com os braços abertos no ar. Logo depois se ajoelhou já com os braços estendidos e depois caiu para o lado já sem vida.

- Certeiro! E olha que nem precisei de mira telescópica igual a você fez ontem a noite. O detalhe de estarmos num barco em movimento não vou nem mencionar para não diminuir mais ainda sua perícia!

Novamente me veio uma sensação recentemente adquirida nos últimos dois dias: Meu estomago criou vida própria e vomitei o nada que não tinha dentro dele. Não conseguia acreditar que a cada minuto perto daquele ser, me traria tantas loucuras.

Sentando-se no barco e pegando os remos de minhas mãos, ele impulsionou o barco velozmente pela escuridão enquanto víamos que pessoas estavam chegando a margem atraídos pelos gritos da mulher em fuga e pelo disparo.

- Admita meu caro! Foi um belo tiro.
- Você é louco? Encoste esta merda de barco na margem, não passo mais um minuto ao seu lado!
- Mas por que? O que você acha q eu deveria fazer? assistir ao estupro como um voyeur desgraçado?
- Ele já havia parado quando você gritou! A mulher já tinha fugido! Não precisava mais nada!
- Hum-rum... E amanhã? Você estaria por perto quando ele resolvesse aliviar sua pressão hormonal de novo? Ou com apenas um grito, alguém teria a capacidade de reformular todas as idéias, conceitos, taras e desvios de alguém? Um grito e ele iria correndo para uma igreja se converter... Hum-rum...
- Mas é errado! Não se pode sair por ai matando as pessoas! Meus Deus! O que está acontecendo comigo?
- E se fosse uma irmã sua? Uma filha? Ou mesmo sua mãe?

Tive que me calar, sempre aleguei para os outros e até para mim mesmo que em certos casos, eu mataria alguém. Mas meu silencio não calou sua retórica:

- E você ainda não admitiu que foi um belo tiro.
- ...
- E olha que coincidência: você estava falando que sexo e morte não combinavam. Aliás: você falava sobre as maravilhas poéticas do sexo, sobre o prazer mútuo; não foi?

Neste momento, seu sorriso se transformou em uma imensa gargalhada ele largou os remos e acompanhava a risada com tapas que dava no joelhos. Mas após se refazer, rapidamente ele voltou aos remos e às palavras:

- Onde estava o prazer daquele estupro? No homem? Então era lícito por isso? Onde estava o romance?
- Você esta tentando me manipular novamente, desta vez não vai conseguir, desista.
- Não preciso. Você já concordou comigo desde o momento que me viu se levantar no barco. Seu problema é outro.
- E qual seria meu problema, já que você me conhece tão bem? Já que o grande dono de todas as verdades, reitor das vidas alheias e assassino de plantão nas horas vagas parece ser conhecedor de toda a verdade do universo?
- Bom, em primeiro lugar obrigado “reitor das vidas alheias”, soou muito interessante. Em segundo lugar, acho que você deveria rever sua ética pois não faz dois dias que você estava no meio do mato atirando em animais indefesos, alias não teve nenhum problema em esganar um deles com as próprias mãos.
- Há! Não me venha com essa! Era diferente!
- Em que? Na inteligência do animal? Na sua superioridade enquanto criação máxima do universo? Você nem precisava matar para comer! Foi por puro prazer! Aqueles animais não estavam atacando nem seus semelhantes nem seus diferentes meu caro. E quanto ao seu problema: no momento o maior deles chama-se RELUTANCIA!
- Relutância?
- Sim. Primeiro: reluta em admitir que faria o mesmo no caso do amante noturno lá atrás
- E ?
- Segundo e mais importante: Reluta em admitir que foi um belo tiro.

Mas uma vez, suas palavras faziam um sentido grotesco que não sabia de onde vinha. Mais uma vez me vi acuado pelos meus próprios pensamentos e pelas minhas próprias convicções. Só consegui emitir uma palavra:

- É...
- É o que?
- Eu faria o mesmo, mas seria apenas em uma situação especifica como aquela.
- E sobre o tiro? Foi ou não foi um belo tiro?
- Você precisa mesmo de tantos holofotes em cima de você?
- Foi ou não foi?
- Que diferença isso faz? Nem estava tão distante, e o barco nem estava com tanto movimento.
- Mas foi ou não foi? Admita!
- É...
- É o que?
- Foi um belo tiro porra! Satisfeito agora? Foi uma porra de um belo tiro!
- Obrigado, um dia você chega lá. Olhe! Chegamos!

E lá no meio do nada, surgia sua casa, totalmente isolada com os muros altos, na parte de trás que dava para o rio, um grande portão de aço marcava o inicio de uma rampa que mergulhava alguns metros dentro do rio. Ao lado desta rampa um pequeno píer flutuante onde ele amarrou o barco e saltou de dentro. Eu o acompanhei até o portão, onde ao invés dele ir até o pesado cadeado que cerrava a entrada, foi tateando o portão até achar uma pequena lamina solta que deslizava lateralmente, revelando um pequeno teclado escondido numa reentrância do portão. Ele digitou algo no teclado, e um barulho metálico destravou a lateral do portão, fazendo com que ele começasse a correr lateralmente.

- Um ladrão pode perder horas tentando abrir o cadeado e de nada adiantará. Ele não serve de nada!

Entrou dentro da casa e saiu empurrando um pesado carrinho metálico com rodas pesadas de ferro, o carrinho tinha o formato exato para caber o barco, era preso por um fino cabo de aço. Ao chegar na água o carrinho mergulhou abaixou da linha da superfície e facilmente ele pôs o barco em cima. Após prender o barco ao carrinho por meio de grossas tiras elásticas, ele entrou dentro da casa e acionou algo que parecia um motor elétrico para logo depois eu notar que o cabo esticava e aos poucos o barco foi sendo puxado para dentro.

Entramos na garagem e pude observar que ela atravessava todo o subsolo da casa e ia até a entrada da frente. Dentro dela havia duas motos, uma picape e um sedan preto, alem de bicicletas, do próprio barco e de uma enorme oficina com uma miríade de ferramentas extremamente organizadas. Não parecia ser a mesma casa da mesma pessoa que morava na parte de cima e onde tudo era desarrumado e virado de ponta cabeça. Ele pareceu ler meus pensamentos:

- Uma casa é só uma casa, mas a oficina de um homem é seu castelo!
- Não observei nada disso ontem a noite.
- Também! Desceu pálido que parecia um zumbi!
- Por que será não? – Perguntei retoricamente , deixando transparecer meu desconforto.

Dei um riso meio forçado e comecei a examinar aquele subsolo. Sempre fui aficionado por ferramentas, e aquilo era um paraíso para mim. Eram jogos de soquetes, furadeira de coluna, prensa hidráulica, chaves combinadas e de todos os tipos harmonicamente dispostas num painel em cima da bancada. Esmeril, morsas de vários tamanhos e agarras.

Tenho que admitir que senti uma enorme inveja daquele lugar. Enquanto eu babava em cima daqueles brinquedos, ele pediu licença e falou que voltava em alguns minutos.

Eu ainda não tinha chegado nem na metade das gavetas, painéis e caixas quando ele voltou de banho tomado e vestindo um conjunto de moletom branco com detalhes cor de rosa nas mangas e com um bordado enorme na frente:

“Quer perder peso? Pergunte-me como!”

Eu li aquilo, e comecei a esboçar um sorriso tímido, para depois abrir o riso que desaguou num a gargalhada que ecoou dentro da garagem.

- Qual é a graça ? – Perguntou-me meio constrangido
- Nada...Nadinha! Só estou imaginando qual o conselho que você daria para alguém perder peso: “Mate uma pessoa por dia e passe a note remando, desossando o cadáver como se fosse um porco, depois cave uma cova e atei fogo nele e depois reme mais um mundo de distancia que garanto que vai manter a sua forma!”
- Ainda não entendi a piada... – Sua sobrancelha direita arqueou-se enquanto o olho esquerdo fechou-se um pouco.
- Alem do que, que homem em sua sã consciência sairia vestido com uma aberração dessas? E ainda tem os detalhes rosinhas!

Desabei em gargalhadas e continuei:

- Afinal dentro de um louco reside uma alma feminina! Qual será sua próxima surpresa? Um salto alto para combinar com essa roupinha ridícula de veado?
- Esse conjunto pertencia ao meu pai, só uso ele em ocasiões muito especiais...
- Há ta... E você vai querer que eu acredite nisso? – Falei já cortando a risada, sentindo que literalmente tinha “falado merda”
- Gostaria que sim, pois você acaba de me deixar muito constrangido, você gostaria que eu pusesse outra roupa?
- Não cara! Mil desculpas... Puta que pariu! Não vou nem tentar consertar. Se mexer mais, fede mais. Desculpas. Na boa, não sabia nem que você tinha pai.
- E como eu teria sido gerado, numa chocadeira? – Responde ele de forma mais brusca, seu olho esquerdo fechou-se um pouco mais, e sua sobrancelha direita já estava tão arqueada que as rugas desenhavam uma meia lua em sua testa. Havia um brilho no seu olhar que começou a me assustar.
- NÃO! Não quis dizer isso! Ta vendo? Quanto mais se tenta desfazer uma merda, mas ela fede!
- É, concordo. E você acaba de cair no meu conceito.
- Pó cara... – gaguejei já imaginado que dali não sairia vivo. Pela primeira vez desde o inicio de todos os acontecimentos, me dei conta que um louco homicida não teria nenhum problema em ter mais um esqueleto em seu armário, e sentia que o próximo seria eu.
- Você não deveria ter feito isso, isso sim foi errado, isso sim foi um grande erro!
- Bom, já pedi desculpas, o que mais posso fazer?

Ele nada respondia, apenas me fitava com um olhar impenetrável e frio enquanto se movia em direção a uma das bancadas, imaginei que ele estava em busca de mais alguma arma e que aqueles eram meus últimos momentos de vida. Eu suava frio e minhas pernas tremiam feito vara verde enquanto ele em silencio abriu uma das gavetas e de lá tirou a última coisa que eu queria ver naquele momento: Um .38 taurus cano longo com alça de mira e cano reforçado e ventilado. Naquele momento ela parecia ter o triplo do tamanho. Tentei me afastar, mas atrás de mim estava a bancada de ferro, o toque frio do metal em minhas costas só fez piorar a angustia e o medo que eu sentia. Quando ele falou, sua voz era cadenciadamente lenta, como se quisesse que eu escutasse cada letra de cada palavra separadamente.

- Você sabe qual foi o seu erro?
- Sim cara... Putz... falei demais e feri seus sentimentos.
- Não, não foi isso...
- Há meu... Foi sem querer cara, na boa! Você tem entender que os últimos dois dias não tem sido fáceis para mim.. Pô cara! Dá um desconto! Para com isso meu! Você com essa arma não mão e com essa cara... Meu! Olha minhas mãos! Já estou suando frio meu! Para com isso! Pelamordedeus!
- Não foi esse seu único erro.
- Tem mais de um?
- Ô se tem!
- Então me fala caralho! Me deixa pelo menos tentar consertar a merda que eu fiz.
- Existem coisas nesta vida que não se consertam, que se você não tiver cuidado, depois não tem conserto

Ele apontou a arma para meu rosto e avançou lentamente até encostar ela na minha nuca, e sussurrou no meu ouvido:

- Seu segundo erro foi amarelar só porque eu peguei a porra da arma. Eu até duvido que você não esteja todo mijado. Nunca mais aja assim, não interessa onde você se meta, haja feito um homem! E-N-T-E-ND-E-U?
- S-s-s-siim – Gaguejei sem conseguir nem mais respirar, comecei a ver um filme de toda a minha vida passar pelos meus olhos.
- Seu segundo erro você já sabe qual foi, certo?
-...
- Eu te fiz uma pergunta porra!
- S-s-s-siim – Gaguejei novamente
- Se sabe, porque ainda está tremendo? Não entendeu o erro? Deixa pra lá...
- ...
- Seu primeiro erro – Continuou ele falando ao meu ouvido enquanto eu tentava imaginar qual seria a sensação de levar um tiro a queima-roupa na nuca, se iria demorar para morrer, se iria sentir a dor,etc – foi acreditar em mim...

Eu olhei para ele e o filho da puta começou a sorrir e se afastou ainda falando:

- Mas você é um pateta mesmo! Você acreditou que eu ia te matar ô mané?
- ... – Em silencio, eu não acreditava em mais aquela loucura. O cara tava tirando uma da minha cara!
- Esse moletom eu ganhei de uma namorada, e foi a primeira roupa que ví no armário.
- ... – Eu ainda estava em choque, não conseguia pronunciar nem uma palavra, aliás: acho que ainda estava sem respirar a alguns minutos.

Ele caiu na gargalhada até ficar sem ar, enquanto o sangue recomeçava a correr nas minhas veias. Meus dedos estavam roxos e dormentes de tanto que apertei a beirada da bancada, meus maxilares doíam de tanta força que eu fiz para esperar o tiro na minha cabeça e o filho da puta rindo aos borbotões da minha cara. Comecei a ver estrelas, minha adrenalina tinha ido a mil e agora cobrava seu imposto. As trevas queriam me engolir novamente e senti minha pressão arterial descer violentamente. Por um momento só enxerguei luzes brilhantes, e a voz dele parecia estar muito distante. Respirei fundo e tentei me recompor enquanto ele me convidava a conhecer o resto de sua oficina. Segui ele ainda com as pernas bambas e ele foi descobrindo um torno elétrico, uma fresa e mais outras maquinas que estavam cobertas com enormes lonas automotivas.

Eu não conseguia escutar suas palavras, pois sentia meu coração pulsar nas temporas e meus ouvidos zumbiam enquanto minha cabeça ainda girava. Assim que a voz voltou a habitar minha garganta eu implorei:

- Seu filho de uma grandessíssima puta! Preciso urgente de uma bebida...

Depois disso, não senti mais o chão sob os meus pés, tudo começou a girar e a ultima coisa que senti foi meu queixo chocando-se com o piso frio da oficina.

(Continua)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Minha mão esquerda (02)

- Mais uma noite. Na grande sala branca, faces conhecidas aguardam enquanto suas vozes tornam-se burburinhos para depois virarem sussurros até que o silêncio é sintonizado. O odor do incenso invade meu peito, as luzes azuis conseguem atravessar minhas pálpebras cerradas enquanto a voz já conhecida comanda os passos do caminhar.
10... 9 ... 8... 7... 6... 5... 4... 3... 2... 1... 0...

O som monótono do mantra cumpre seu papel e embriagado pelo incenso eu mergulho nas trevas azuis de minha alma. No escuro da sala silenciosa eu abro os olhos e enxergo luzes e cores que não me pertencem, torno a cerrar a visão e descubro que de olhos fechados eu consigo enxergar longe, além dos muros que nunca enxerguei. De olhos fechados eu me enxergo e me dispo das couraças que há muito me protegem de mim mesmo.

No escuro encontro a luz!

O mantra se vai, e sem querer abandonar o abandono das trevas celestes, levo as mãos aos olhos e aperto até a dor surgir. Neste ponto cheguei a desejar a cegueira, para que nunca mais deixasse de ver todas as coisas que vi no escuro. Mas a luz veio e levou a escuridão, deixando um rastro harmônico gravado nas retinas do meu ser.

Mesmo na claridade, ainda sinto a maravilhosa escuridão que de luz me iluminou.

Marcelo Silva
09/06/09

terça-feira, 9 de junho de 2009

Ventre Negro - Capítulo 03

Chegava setembro de 1900 e a região se viu infestada de criaturas noturnas que empestaram o local. Eram morcegos, rasga-mortalhas, bacuraus, sapos cantantes e cachorros selvagens fugidos de seus lares e esquecidos do contato com o homem. Alguns acidentes começaram a acontecer na mesma noite em que a criança ainda sem nome sumiu e ninguém sabia de seu paradeiro.

As cabras e galinhas apareciam degoladas e sem uma única gota de sangue a correr em seus vasos. Algumas crianças mais afoitas ou desavisadas eram encontradas pela manhã, totalmente dilaceradas e aparentavam-se com um pão molhado de sangue. Foram sete dias de matança e sangue até que a velha cigana avisou a todos que a culpa era da criança sem nome, e que ela poderia ser encontrada novamente boiando nas águas do grotão.

De fato, ao chegarem lá e apos trazerem-na de volta ao povoado, os acidentes cessaram apesar das tais criaturas continuarem a infestar o lugar. Ao perguntarem à cigana como ela sabia do paradeiro da criança, ela suspirou num gemido profundo e disparou: “Não sei, mas quem sabe de alguma coisa nessa vida?”

Todas as tentativas de achar a família do menino, para assim terem um pretexto para levarem-na para o mais longe possível mostraram-se infrutíferas. E a cada segundo que o menino passava longe do lugar a procura de sua família, novos ataques dos seres noturnos se reiniciavam.

Ao final de 1900, descobriu-se que a criança tinha o poder se sumir à noite sem que ninguém notasse e fosse parar no leito do ventre escuro que o gerou. Apenas a cigana e o velho podiam notar com antecedência mútua quando ele estava prestes a iniciar sua fuga e conseqüentemente os acidentes que ninguém mais acreditar serem simples acidentes.

Os mais surperticiosos Começaram a arquitetar a morte da criança, mas a cada tentativa frustrada, eles eram tomados pela loucura e se jogavam no fundo do grotão, para a morte. Os que eram detidos antes do suicídio tinham que ser amarrados até que a loucura os levasse ao fim.

A cada tentativa de qualquer ato contra o menino era revidada pela noite que parecia obedecer ao resmungo sem fim e sem sentido que ele desfiava incessantemente.

Conseguiram trazer o bispo da região que ao ouvir o menino foi primeiro a descobrir que a criança falava em latim. Seu primeiro ato foi querer leva-lo para o convento para que em caso de ser um Dom de deus, ele fosse exultado e se for obra de satã para que através da penitencia e do isolamento sua alma fosse salva.

Mais uma vez a população se viu dividida para escolher a ida do menino e talvez assim exterminar seus infortúnio malignos ou fechar-se em suas casas a noite com medo das incursões das assombrações, como começaram a ser chamados o integrantes séqüito noturno que semeava a morte no lugar.

O clero decidiu por todos e levou o menino após as festas do ano novo, na própria carruagem do bispo que veio pessoalmente busca-lo. Era uma manhã quente e tediosa, os poucos pássaros de passagem pelo lugar calaram-se, o céu não tinha nenhuma nuvem, o calor era tão grande que faziam os pregos das portas rangerem e entortarem-se como se estivesse derretendo. A partida estava marcada para após a sesta do almoço, mas estranhos acontecimentos foram atrasando a viagem a cada minuto. Uma hora eram os cavalos do cocho do bispo que adormeceram inexplicavelmente, depois foi uma diarréia insuportável, experimentada pelo representante do clero, e até um raio caiu sem nenhuma nuvem no céu e espatifou o cocheiro em centenas de pedaços pretos e fumegantes como pedras de carvão ardente.

Mas o bispo conseguiu embarcar às seis da tarde e após o cortejo virar a primeira curva da estrada, os cavalos pararam e o cocheiro reserva jnto com o bispo saltaram do veículo e saíram correndo em direção ao grotão. O povo tentou impedi-los já sabendo o que iriam fazer, mas não conseguiram segura-los e mais duas vítimas foram tragados pelo ventre negro.

O menino foi encontrado brincando placidamente com o rosário do bispo dentro do coche. Levaram-no ainda dentro da carroça ao pátio da igreja. A população não ligava mais se sua morte fosse amaldiçoar a todos, se seu fim traria a loucura a todos, se sua morte decretasse a morte de todos. Estavam prontos para apedrejarem aquela criatura até seu ultimo suspiro de vida.

Como num impulso inconsciente e coletivo, todos se armaram de paus, pedras, foices ou qualquer outra coisa que estivesse à mão e cercaram o coche do bispo. Foi quando ele começou a emitir uma luz estranha, que ao invés de iluminar, apagava as luzes vindas das tochas, candeeiros e lampiões que o cercavam no pátio da igreja para onde foi levado. Foi exatamente ali naquela hora que ele falou em um português claro, bom e fluente, foi quando todos tiveram consciência que sua voz era formada pela mesma coisa que formava os estrondos da terra, pois sua voz não era ouvida nos ouvidos, e sim dentro das cabeças, dentro do peito.

A criança murmurou que eles estavam presos a ele, e que essa cadeia nunca haveria de ser quebrada. Sorrindo um sorriso belo como os dos anjos, falou que aquela era sua terra e aqueles eram os escolhidos para cuidarem dele. Foi quando alguns dos mais exaltados se precipitaram sobre ele, mas não conseguiam toca-lo, sua voz suave enfeitiçava e embriagava quem a escutava.

O velho lenhador que a tudo assistia em silêncio perguntou-lhe:

- Se somos escolhidos, o fomos por alguém. Quem nos escolheu?
- Suas escolhas foram feitas antes do tudo ser algo, suas escolhas foram feitas quando ainda daqui não eram; suas escolhas foram feitas antes da noite eterna parir a luz.
- Então ainda temos escolhas?
- Sim, mas antes dos novos plantios serem escolhidos, é necessário a colheita do que já foi semeado.
- Mas se fomos escolhidos por nós mesmos, e se a colheita já iniciou com sua chegada, o que nos falta colher?
- O trigo e o Joio, para mas não poderão separar e o pão terá que ser amargo. Só os fortes agüentam o pão amargo, os covardes morrerão de fome.
- Não entendo nada do que você esta falando moleque!
- Não é uma questão de aprender, e sim de lembrar.

A cigana resolveu se meter na conversa e perguntou-lhe:

- Você fala com a língua bifurcada da serpente, você complica mais do que esclarece. Quem é você afinal?
- Ora, o salvador fala através das parábolas.
- E você se intitula a salvação?
- Eu me intitulo O filho.
- E quem é seu pai?
- Se sou filho, sou semente, se sou semente já fui fruto e para ser fruto tive que ser gerado. Tudo o que existe foi gerado apenas em uma fonte e desta fonte viemos todos. O nome de meu pai é inominável e nunca foi nem poderá ser escrito.
- Então você nega ser filho de Deus e aceita o demônio como pai?
- Defina Deus!
- Deus é o pai da bondade e da verdade, é a luz dos caminhos; é a ausência da escuridão!
- Muito bonito, mas defina Demônio!
- É o mal, o pai da mentira e a perversão das virtudes, é a ausência da luz e a fonte de todas as desgraças do mundo!
- Então um é a luz e outro a escuridão, um cuida da verdade e outro da mentira; enquanto um guia o outro perverte?
- Sim! Isso não torna tudo claro?
- Não, já que parece serem os dois iguais em poder e tamanho.
- Blasfêmia! Você é o filho do tinhoso! do coisa-ruim! do canhoto! Do pé-de-bode!

A essa altura, ninguém entendia mais nada. Os poucos que ainda estavam sóbrios sem terem sidos afetados pela narcose da voz da criança se olhavam sem entender a maior parte das palavras trocadas pelos três. O lenhador se aproximou da cigana e fitando-lhe com um olhar de reprovação murmurou para que ela se calasse, que ali não era lugar nem hora. Depois ele apontou com os olhos para o povo e ela notou que todos olhavam para ela com ares ameaçadores , tomados por uma embriagues desconhecida.

(Continua)

Minha mão esquerda (01)

A noite vai passando, aves noturnas gritam para a escuridão como que querendo rasgar meus tímpanos e abrir chacras desconhecidos. Sons misteriosos tocam meu peito mas não alcançam meus ouvidos secos, com sede de saber. Meus olhos vermelhos do sono perdido exclamam uma voz rouca e diáfana, clamando pela paz que há muito perdi nos corredores de minha alma arrogante.

Minha pele sente o sabor da memória dos átomos de minha herança genética, lembro-me dos íons que pisei nas minhas caminhadas estelares. É lá onde reside a algema que me prende ainda neste plano.

Eu comunguei o corpo do Uno, hoje desconheço o toque profundo de minhas próprias sementes. Não (des) conheço os caminhos ancestrais que um dia percorremos, mas meu sonhar me suga o Eu de volta à fonte e lá aspiro o pó das flores que plantei, ciente dos espinhos que aqui iria colher.

É madrugada alta e no despertar do mundo escorre minha inconsciência pelo ralo da vida cartesiana que me faz esquecer a vida que nunca tive.

Amanhece mais um dia!!!

Marcelo Silva
25/05/2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 03

Ainda hoje sinto gosto de sangue na boca cada vez que me lembro do corpo deitado na margem. Parece que foi a poucos minutos que a luz amarela da lanterna iluminou o pequeno furo na nuca dele, libertando o filete rubro de vida que escorria pulsando e que a terra úmida não conseguia sorver. Fiquei estático observando o caminho tortuoso que o sangue desenhava em busca das águas do rio. Ao unir-se ás águas turvas ele se espalhou rapidamente, formando um pequeno lago de sangue dentro das águas do rio, preso à margem pela nascente escarlate que não parava de verter mais e mais sangue. Lembro-me do som dos peixes a pularem na tona, beliscando os pequenos coágulos que desciam rio abaixo.

O corpo exalava um cheiro horrível, mas não era um cheiro de morte ou coisa do algo. Simplesmente era falta de banho. Nos seus pés as unhas eram grotescas e sujas, seus calcanhares tinham crostas de sujeira como se nunca houvessem sido lavados. Seus braços tinham placas negras que se misturavam com a pela e os pelos. Seus cabelos eram colados uns aos outros por uma substancia que parecia breu, ou piche.

Sentei num tronco caído ao lado do corpo e tentava raciocinar, mas nada fazia sentido, e o crepitar das folhas sob os pés do meu estranho “amigo” examinando o resultado de meu tiro não me ajudava em nada. Nem mesmo tive reação quando ele foi em direção do barco e falou: “Espere aí, agora temos que arrumar essa bagunça que você fez.”. o barulho dos remos na água era monótono e ritmado. De repente, num respirar mais fundo, absorvi a situação: Eu havia matado alguém! Tentei repassar todos os fatos daquele dia, mas os detalhes não se encaixavam, eu havia visto ele atirar! E por que a vítima não se mexia antes nem depois? Por que eu ainda não havia ido embora correndo daquele pesadelo? Por que eu não fui embora assim que aquele louco puxou o gatilho?

As únicas palavras que saiam de minha boca e que foram Repetida muitas vezes durante toda aquela longa noite foram: “puta que pariu!!!”

Comecei a imaginar formas de me livrar daquela situação, mas nenhuma me afastaria daquele fato. Por mais que planejasse algo, sempre tinha a imagem do riso cínico dele. Imaginei que tudo foi uma manipulação dele, mas não fazia sentido: por que eu? Fui arrancado de meus pensamentos pelo barulho dos remos na água. Dessa vez ele trazia um lampião a gás no barco. A luz do lampião desenhando as formas e sombras do barco nas águas e aquele céu estupidamente estrelado formavam uma bela visão, não fosse o fato de que tinha acabado de atirar em alguém.

Veio com uma garrafa de um litro cachaça e falou: “É melhor você beber isso, o que temos pela frente não é nada agradável.”, falou isso num tom normal, como se o que fossemos fazer (fosse o que fosse) seria algo normal, natural até! Beijei o gargalo da garrafa e deixei descer vários grandes goles pela minha garganta. O fogo da cachaça incendiou meu esôfago e meu estomago criou vida, se contorcendo como um animal agonizante. A reação de meu organismo serviu para eu acordar um pouco, mas de repente senti que lucidez era o que eu menos queria naquela hora. Entornei a garrafa na boca e bebi quase um quarto dela. Acendi um cigarro e ao final dele, a bebida já tinha me relachado até onde eu queria.

“Acabou?” ele me perguntou, não respondi e caminhei em direção do barco. Na escuridão dentro dele, ainda dava para divisar os remos, um galão grande com algum líquido dentro, duas pás, duas picaretas e duas enxadas. Próximo da popa havia uma lona plástica dobrada e vários rolos de fita adesiva, daquela largas utilizadas para fechar caixas. Embaixo do banco havia uma caixa com ferramentas dentro.

Ele pegou a lona e se aproximou do corpo, pude observar que devia ter se passado bastante tempo, pois atrás da nuca dele o sangue já havia coagulado, perdendo o tom vivo e dos cantos para dentro começou a adquirir uma cor escura. Pegou pelos pés dele e o arrastou um metro de onde estava. Como se fosse uma informação que eu iria usar outras vezes, ele me falou: “antes de embrulhar, arraste-o um pouco para trás para poder por a lona por baixo. Assim você não suja a lona por fora e assim também não leva sangue para dentro do barco.”. Abriu a lona preta em duas dobras e colocou próximo ao corpo, como se fosse uma passarela. Rolou o corpo em direção à lona e foi aí que eu vi a trajetória de saída da bala: se por trás ela entrou deixando apenas um pequeno furo, sua saída destroçou o rosto, misturando olhos, nariz e dentes numa disformidade grotesca. Se não fosse o fato de eu estar meio anestesiado com a cachaça, teria sucumbido ali mesmo. Ele deu duas voltas com a lona, porém o terreno era íngreme e ele pediu para que eu ficasse na ponta da lona para ele dar as duas ultimas voltas. Fique acocorado e ao enrolar, o corpo adquiriu velocidade pela gravidade e acelerou em minha direção. “Cuidado! Segure isso!!!” antes mesmo dele terminar a frase, me vi agarrado com aquele embrulho gigante e mole. “Segure dessa jeito, vou adesivar nosso pacote antes que ele caia no rio. Aí sim teríamos problemas.”. Não agüentei e falei a primeira frase completa da noite: “Teríamos problemas? Como assim? E o que tínhamos agora era o que? Estou abraçado com um corpo de um estranho enrrolado em lona plástica! E fui eu quem atirou nele! Como você acha que isso pode piorar? Puta que pariu!”

- “Bem...”
Respondeu lentamente:
- “...Caso não tenhamos o cuidado e a astúcia necessária, isso pode se tornar um assassinato premeditado...”
- “Como assim SE TORNAR? O que você acha que tudo isso é?”
- “Um segredo entre mim e você. Vai depender de sua escolha. Afinal você pode procurar a polícia e tentar explicar o que houve, ou seguirmos nossas vidas como se nada houvesse acontecido. Pois afinal, não aconteceu nada, não é mesmo?”
- “... É.. Não aconteceu nada...” e completei baixinho, quase sussurrando: “...Puta que pariu...”

Não sei de onde saíram essas palavras, mas na hora achei que pelo menos eu estaria ganhando tempo. Não sabia para quê. Enquanto eu segurava aquele embrulho horrível, ele começos a dobrar as pontas e fechar com a fita adesiva, começando pela cabeça e indo em direção aos pés, gastando quase um rolo só para fechar 30 ou 40 centímetros. “Essa é uma das melhores invenções do homem!” falou. “Se você souber usar, você consegue plastificar praticamente qualquer coisa! Observe como a cada volta, eu venho cobrindo metade da fita da volta anterior. Desta forma, qualquer coisa que você fechar com essa fita, fica praticamente hermeticamente fechada.”
- “Parece que não é a primeira vez que você utiliza esse método.” Arrisquei
- “Realmente, diria que já utilizei esse método em várias situações, objetos e oportunidades. Mas e você? Será que esta vai ser a última vez que você utiliza esse método para essa situação específica?”
- “Com toda certeza!”
- “Veremos...”
A ultima frase caiu feito um tijolo em minha mente, a fita já começava a alcançar a cintura e tivemos que mudar de posição. Não sabia o que fazer e colocamos ele de ponta cabeça. Foi quando observei que a parte superior do corpo estáva rígida, enquanto a parte inferior tombava para os lados.
- “Está vendo? Essa fita é uma maravilha! Em breve o nosso amigo estará firme e lacrado”

Terminamos o pacote, ele pegou a enxada e me entregou, apontando para o sangue no chão, e com o polegar direito apontou por cima do ombro, em direção ao rio. Fui arrastando aquela coisa que já começava a feder e coagular numa pasta viscosa. Puxei tudo para dentro do rio, onde os peixes faziam festa, depois com a lanterna verifiquei se não havia esquecido nada e me sentei no barco a procura da garrafa de cachaça. Só notei que ele já havia trazido o corpo para dentro do barco quando notei que estava sentado nele.

“Puta que pariu!”, foi o que pude exclamar. Recolhemos o restante das coisas e descemos o rio sem precisar acionar os remos. A lanterna ia na proa, iluminando todo o caminho à frente enquanto desenhava nossas sombras a partir da popa do barco. Não sou muito bom em medir distancias, mas acho que saímos dos limites da cidade, pois as luzes que já eram longes da casa dele, agora sumiram no horizonte. Na minha frente uma nova abóbada de luz no céu indicava que estávamos já próximo da cidade vizinha.

Aproveitando uma curva do rio, ele imprimiu força nos remos e facilmente alcançamos a margem. Puxamos o barco para terra e ele saiu procurando algo pelo chão, e eu junto sem saber o que procurávamos. “Aqui!” exclamou. “Por favor, vá pegar as ferramentas”, quando voltei com a caixa que estava debaixo do banco, ele me perguntou se eu iria cavar com uma chave de fenda, uma faca de cozinha ou com a serra. Senti-me ridículo e fui buscar as pás, enxadas e picaretas.

Começamos a cavar a terra fofa e úmida, não era difícil e em pouco tempo tínhamos uma enorme e profunda cova. A eletricidade começou a percorrer o meu corpo e juntos fomos buscar o falecido para providenciar-lhe o sepultamento. Pensei que íamos jogar ele dentro e enterrar, porém ele nos fez colocar o corpo de bruços na beirada da cova e pediu que eu trouxesse a caixa de ferramentas. Com a faca, começou a abrir o embrulho, de dentro saiu um cheiro amargo e nas ultimas voltas da lona, ela grudava no sangue do corpo e fazia um barulho de gosma. Quando terminamos , ele foi ao barco e trouxe várias estopas de limpeza, daquelas usadas em oficinas. Senti minha pele se arrepiar antevendo os seus planos. Abriu o galão, e de dentro a gasolina era jogada nas estopas dentro de uma bacia plástica. Além disso, ele começou a encher varias sacolinhas de plástico com gasolina e fechando-as com um nó. Ele foi até a caixa de ferramenta e após calçar um par de luvas de látex que iam quase até o ombro, pegou uma enorme faca de açougueiro. Senti meus olhos esbugalharem quando ele se virou para mim e falou:

- “Preste atenção! Não vou fazer isso sozinho, e não vou ficar repetindo: Já cortou carne para churrasco? Então, é igual! Procure as juntas e corte o máximo possível de tecido, ao final use a machadinha para soltar as cartilagens.”
- “Você deve estar brincando, certo?”
- “Lógico que sim!”

Falou isso e com um golpe vertical, rasgou a perna direita do jeans pelo lado de fora, depois foi a vez da perna esquerda. Com um único puxão, arrancou as calças e jogou dentro da bacia com a gasolina.

- “Meus Deus! A quanto tempo esse trapo não tomava um banho? Jesus!”

O corpo fedia pela falta de banho crônica, mas não foi isso que me virou o estomago e me fez vomitar o resto de nada que havia lá dentro. Foi a exposição dos tecidos da parte de trás dos joelhos, arrebentando-se em tendões, carne e músculos quando ele lentamente começou a arrancar as pernas do defunto! Vomitei até não ter mais ar para respirar, e quando levantei a cabeça, ele já havia arrancado as duas pernas e os dois braços, o corpo era uma imagem terrível no chão sobre o plástico preto. Ele veio em minha direção e falou:

- “Eu já falei que não ia fazer isso sozinho. Que tal se você se recompor e ajudar a arrumar a bagunça que você armou? Ou já se decidiu em procurar a polícia e explicar tudo?”
- “Eu não vou conseguir... não dá!!!”
- “Há vai sim! E é melhor agir rápido, pois daqui a algumas horas o dia vai nascer, e apesar desta região ser bem remota, sempre pode haver algum caçador, lavrador ou outro curioso passando por aqui. Isso pode trazer mais problemas para nós dois. Isso ainda não é um assassinato, certo?”
- “Certo, ainda não é.”

Tentei fazer o trabalho o mais rápido possível, mas era difícil fazer isso sem virar o corpo para cima, e eu não queria olhar a face dele destroçada novamente. Por mais que eu tentasse não enjoar, o cheiro da sujeira, aliado aos pedaços dele que íamos pouco a pouco amontoando ia me vencendo a cada passo.

Terminamos o processo com a degola dele, depois começamos a jogar as estopas e as roupas dele encharcadas de gasolina dentro do buraco, a gasolina formou um gás dentro da cova e quando ele jogou um fósforo aceso, uma explosão surda iluminou a madrugada. Tivemos que nos afastar uns dois metros da cova para poder suportar o calor, e começamos a jogar as partes decepadas dentro da cova acesa. O cheiro da carne humana queimando é terrível! Parece queimar o nariz, faz com que os pulmões percam a capacidade e os olhos começam a arder. Cada vez que jogávamos um pedaço, ele jogava mais duas ou três sacolinhas com gasolina, que explodiam lá dentro e as vezes jogavam pequenos pedaços de tecido humano lá de dentro, que rapidamente eram jogados de volta. Quando o dia começou a amanhecer, estávamos jogando o ultimo pedaço, ele pegou sua cabeça pelos cabelos, encharcou ela com gasolina e a jogou no nosso inferno particular. O cheiro dos cabelos queimando foi insuportável. Só aí que percebi que sob a luz do dia que começava a chegar, dava para ver a enorme coluna de fumaça negra que se perdia no céu.

- “E agora? O que fazemos?” perguntei.
- “Agora é rasgar a lona em pedaços pequenos e jogar lá dentro, não se esqueça das luvas. Aliás, vai lavando as ferramentas que ainda temos um longo caminho rio abaixo”

Enquanto fui efetuar minha tarefa, ele se encarregou de incinerar os últimos objetos e saiu mato adentro e voltou com vários galhos e pequenos troncos de madeira. Várias vezes ele fez isso e ia jogando dentro da cova, em minutos a fumaça passou de negra a marrom até que ficou completamente branca. Tempos depois eu descobri que a única forma de se livrar quase que totalmente de um corpo é queimar em partes e depois colocar muita lenha sobre os restos e queimar tudo, pois assim os ossos se esfarelam restando pouco ou quase nada do que foi queimado.

Esperamos até o sol ficar alto e as ultimas brasas começarem a dar sinal de morte. Enterramos tudo , lavei novamente as enxadas usadas e entramos no barco para continuarmos a descida. Acendi um cigarro e perguntei:

- “O que aconteceu quando você atirou nele? Sei que você errou propositalmente, mas porque ele não se mexeu com o barulho do tiro?”
- “Ele estava dormindo.”
- “ fale sério!”
- “Estou falando, ele estava dormindo desde antes de você chegar. Faziam dias que ele vinha se esgueirando pela minha casa e furtando pequenos objetos. Achando pouco, ele ainda sempre deixava uma lembrança em algum lugar do jardim, ele sempre usava meu jardim de banheiro público.”
- “Então você o conhecia?”
- “Não exatamente, apenas era vitima de seus abusos a mais de 15 dias. Hoje antes de você chegar, eu o encontrei bêbado no meu jardim e enchi uma toalha com clorofórmio e afundei a cara dele dentro, ele nem se mexeu, acredita? Então, depois entrei em casa e peguei um anestésico que estava em casa desde que meu cachorro foi operado aqui em casa e apliquei nele. Depois foi só arrastar ele até o barco, atravessar o rio e deixar ele na posição certa para você vê-lo. Tive o cuidado de colocar ele embaixo da árvore. Desculpe-me, mas achei que se fosse contra o sol e sem a árvore talvez você não conseguisse acertar.”
- “Você é doente!” esbravejei, “Eu não acredito que tudo isso esteja acontecendo, e não acredito mais ainda no fato de eu ainda não ter sumido daqui e nunca mais lhe ver! Meus Deus! Preciso por um oceano entre mim e você!”
- “Tudo isso por que eu duvidei de sua pontaria? Tsc...tsc...tsc..”

E caiu na gargalhada. Eu me tranquei num mutismo medroso, assombrado por visões e cheiros e sons. Só foi interrompido quando ele foi pegando cada ferramenta e foi jogando uma a uma dentro do rio, com uma distancia média de uns 5 metros entre cada uma. Quando o barco ficou vazio, senti que o tempo começava a correr e que de alguma forma eu estava me afastando de tudo o que tinha acontecido nas ultimas horas. Antes de entrar em mais uma curva do rio, olhei para trás e vi que nem mesmo a fumaça era mais avistada. Tudo estava ficando para trás.

Chegamos na próxima cidade e atracamos sob uma árvore, por trás dela uma pequena vila de pescadores. Saímos dois extremos: ele no máximo da naturalidade, e eu achando que todo mundo já sabia do que tinha acontecido. Me espantei quando ele sentou na mesa do boteco e pediu uma cerveja e me chamou para sentar. Lembrei que estava com sede.

Sentei, e o copo foi enchido com aquele liquido dourado, enchendo quase até o topo e deixando um pequeno colarinho, ergui o copo contra o sol, encostei nos lábios e a cerveja parecia que me liberava de tudo e de todos. A cerveja gelada desceu minha garganta lavando até a minha alma. Cada gole era sorvido como se fosse a ultima oportunidade que teria na minha vida para tomar uma cerveja. Não agüentando mais meu próprio silencio, exclamei!

“Puta que pariu!!!”

Tomamos 14 garrafas.

(Continua)

Fugas

Hoje na solidão de meu quarto, no vazio de minha alma; no inferno de meu peito eu tive uma visão, era um outro tempo em um outro espaço onde eu era o espectador de uma linda e triste estória de vida.

Uma criança que brincava perto de um fogo que ela ainda não sabia que era apenas a exteriorização do calor que queimava em suas entranhas. Ela se sentia atraída pelo perigo do fogo como uma mariposa que voa em direção às brasas, hipnotizada... e mesmo tendo ciência da morte eminente não consegui desviar-se deste caminho.

E nesta busca inconseqüente ela fugiu a primeira vez, fugiu das regras e leis de seu lar e embarcou num cruzeiro de novas sensações, emoções e prazeres. Ela casou-se não por amor, mas por que sua fornalha interna a fez usar alguém para sua primeira fuga. Ela amou, sofreu e ao invés de temperar-se em seu intimo com a força da queda, assim como fazem os rios, ela endureceu suas emoções e deixou transparecer apenas o que queria, quando queria, e para quem queria. Ela fugiu pela primeira vez e magoou quem deveria apenas acariciar com afetos, respeito e amor.

Ainda era uma criança, tola e mimada, inconseqüente e infantil; bela e sensual.

Achando que a saída ainda era a fuga, ela migrou para outro lugar com outro amor e só encontrou a si mesma, só encontrou o amargo salgado que endureceu a pele de seu coração. Fugiu usando os mesmo métodos falhos e já testados como sem efeito.

Ainda era uma criança...

Voltou para seu lar e sua sensualidade apenas crescia enquanto seu amor próprio era revestido por mentiras e fantasias mirabolantes. Até que ela própria começou a acreditar em suas próprias mentiras, então ela perdeu a noção do real perigo do fogo que habitava em seu peito. Ela sentiu-se preparada, invencível e imortal. Foi ai que teve que fugir de novo, fugir de quem deveria protege-la, fugiu de quem a agrediu no âmago, na mais intima porção de seu ser que ela pensava estar protegida. Enganou-se quando se protegeu do mundo exterior, errou em pensar que suas dores só poderiam ser causadas por alguém de fora. Ela já era uma mulher linda, sensual e transpirando sexo por todos os poros, e sua beleza que antes era uma dádiva transformou-se em uma maldição que ela sabia que a perseguiria por onde quer que fosse, não importava para onde tentasse fugir.

Mas ela fugiu de novo, ainda era uma criança tola, ingênua e burra...

Fugiu desta vez para alguém tão jovem e cheio de vida como ela, pensava a criança tola que poderia controlar alguém pelo amor, carinho e atenção. Foi quando ela partiu seu coração mais uma vez, e desta vez ela magoou não só quem amava, mas também a si mesma ao descobrir que não poderia controlar os mais velhos, os mais jovens e nem tampouco os de sua idade. Ela sofreu com a descoberta e entregou-se a relacionamentos furtivos e sem embasamento. Ela desce a ladeira dos amores de fim de noite, ela bateu às portas do inferno de Eros onde só o prazer importava, ela entregou-se a si mesma, deixou que o vulcão que nasceu junto com ela, dentro dela jorrasse o rio de lava que queimou de vez a pele de seu coração e o transformou num fruto podre, ressecado e sem vida.

Ela ainda era uma criança tola e ingênua, linda e sensual, esperta e burra... mas agora ela também era uma mulher fatal que caçava seus amores como uma fera caça sua presa, encurralando-a e cansando-ª e depois da caça e de seu bote final ela abandonava as carcaças pelo caminho de sangue, desilusões e mentiras que ela trilhava.

E neste caminho, ela ainda achou tempo para mais uma conquista, mais um flerte com alguém que era mais um de seus enganos, alguém de posses, de finos tratos e bom gosto. Alguém que poderia dar a ela o castelo de cristal que ela sonhava como ultima fuga. Mas ele a trocou por um amor de ocasião, um casamento de aparências. Mas a criança tola e burra ainda o guardou dentro da fruta sem vida que chamava de coração.

A criança agora era uma mulher, livre, independente e a procura de emoções fortes e amantes capazes.

Mas o destino quis que ela mais uma vez tivesse a chance de fugir dela mesma. E colocou alguém em sua vida que a amava, respeitava e adorava seus sorrisos e fantasias. Ela foi atraída pelo seu jeito livre, pela sua beleza impar, pela sua fama de perigoso e mal.

E eles se encontraram, viveram, amaram-se, trocaram juras de amor eterno.

Com ele, ela vivia numa eterna sala de espelhos, pois eram farinha de um mesmo saco, viviam nas mesmas ilusões e fantasias, tinham o mesmo calor dentro de si e a mesma frangância em suas vidas. Isso às vezes os assustavam e outras vezes os acalmavam. Sentiam que ali , um nos braços do outro, era o seu lugar.

Os seus corações que estavam murchos, ressequidos e sem vida começaram a florescer e do meio do lodaçal surgiu uma bela flor de cor azul, azul como o mar, azul como o mais azul dos céus.

Ao ver que não teria porque fugir de novo, o demônio que habitava em seu peito fez com que ela se se lembra de ex-amores, que ela não se desligasse de seu mundo de fantasias, fez com que ela quisesse mais uma vez fugir para longe de sua real estória, de seu real destino.

E ela arquitetou a fuga, envenenado-o aos poucos com a peçonha da frieza, sangrou seu peito com a lamina da falsidade, cegou seus olhos com os espinho da desilusão e finalmente afogando a flor azul em seu peito com a água da distancia.

Ao sentir-se ferido, humilhado e traído, ele encontrou seu demônio também e antes que ela pudesse desferir o golpe de misericórdia ele levantou-se e tomou sua melhor arma para defender-se, usou sua astúcia, seu veneno suave e harmonioso, usou sua mente e a atacou a distancia, mostrou a ela o quanto ela poderia estar perdendo ao seu lado ou longe dele. Colocou todas suas cartas na mesa e jogou suas fichas pelo chão que antes reluzia de amor e agora estava sujo de magoas.

Eles se harmonizaram e continuaram como amigos, se viam, se imaginavam e ele sentia a saudade de sua companhia leve e diáfana como a mais suave das brisas de outono.

A criança-mulher mais uma vez fugiu e agora minha visão se vai, é como seu eu acordasse de um sonho nem bom, nem mal. Mas vejam vocês o como podemos ser crianças tolas, ingênuas, mimadas, burras, cruéis, sensuais e belas. Veja o quanto o mundo nos oferece de possibilidades e na maioria das vezes nós as jogamos pela janela como se fossemos donos da verdade, como se o mundo girasse em torno de nosso umbigo.

E agora que acordei da visão, do sonho de revelação que tive, não pude ver se o final foi feliz, se viveram felizes ou infelizes para sempre.


Marcelo Manoel da Silva
Caruaru, 15 de dezembro de 2001
14:06:45
na solidão de meu quarto

sábado, 23 de maio de 2009

Ventre Negro - Capítulo 02

Na lua cheia de setembro, o cheiro de chuva no ar fez com que todos passassem a fitar os horizontes desde o alvorecer até o ocaso, mas foi preciso chegar o final dos dias de novembro para que a chuva chegasse com uma torrencialidade dilúvica tão grande que as lavadeiras que lavavam roupas na pouca lama que restava no leito do rio foram engolidas pela cabeçada da cheia que de tão grande e veloz, chegava antes mesmo do barulho dela própria. Um mês de chuvas bíblicas foram suficientes para destruir tudo o que restava do pequeno vilarejo que foi o vale do agreste.

As notícias da catástrofe foram recebidas com desdém pelos poderes constituídos que logo suspenderam as verbas de ajuda. Até o clero tratou de apressar as obras que tratavam da edificação de uma igreja na região, para assim aproveitar-se das chuvas para se vangloriar de seu intimo contato com Deus.


Os primeiros dias de novembro encontraram o vale todo verdificado e florido, parecia que o éden havia renascido na terra. O velho ipojuca espumava de vida, e a miríade de peixes era tão fabulosa que as redes jogadas pelos novos colonos eram fracas para tanta fartura e rebentavam numa explosão de peixes que saltavam até pelas margens.

No grotão parido pelos estrondos, escutava-se o borbulhar da água acumulada em seu interior. Os mais jovens e afoitos trataram de descer sua encosta para ver a quantidade d’água acumulada e falavam que nunca mais faltaria água na região. O grotão foi aos poucos sendo cercado de casas e um ano depois, no ano zero do novo século, nascia Gulutarã, que foi batizada assim pelos barulhos d’água do grotão e dos estrondos que nunca cessavam na região.

Era fevereiro de 1900, Gulutarã já contava com uma cadeia publica com dois soldados magros do pescoço fino, calçavam alpercatas de couro e vestiam uma farda de alvorada azul desbotado e carregavam cassetes de ipê como única arma para o controle legal do lugar.

O delegado era um enteado de um cabo eleitoral de um deputado que foi eleito sem Ter tido nenhum voto, mas que era um alcagüete de primeira e logo foi promovido ao posto que ocupava em gulutarã. Em seus desmandos de ébrio fardado, vivia metendo os pés pelas mãos e a cada dia, era mais temido do que respeitado, mais difamado do que conhecido; mais evitado do que cumprimentado. Era o cabo hélio, um negro afilado que primeiro batia, espancava e matava para depois perguntar quem era a vítima de seus caprichos sádicos e autoritários.

A igreja erguida pelo clero jazia no fim da rua principal, esquecida por todos pelo simples fato de que não contava com um padre. O único pároco da região residia a mais de 10 léguas e só aparecia na cidade para recolher os donativos mensais e quando alguém de posse tinha que batizar, casar ou encomendar a alma de alguém.

A única autoridade reconhecida no lugar era a de uma velha cigana, que por não poder mais correr o mundo, fincou as estacas de sua centenária barraca em gulutarã e ali ficou para esperar a morte, que lhe acompanhava desde criança, quando toda a sua tribo naufragou nos mares índicos e só ela sobreviveu por que, segundo ela, a morte teve pena de leva-la e prometeu seguir-lhe até que ela tivesse um lugar com a certeza de um tumulo eterno.

Ninguém fazia nada sem antes consulta-la. O plantio, a colheita, os casamentos, os batizados; enfim: tudo era regido, abençoado e ditado pela boca da cigana, onde já não havia mais nenhum dente. Sua risada tinha o poder de assustar as crianças, e seu cajado com a caveira de um macaco em seu topo era motivo de medo e apreensão, pois todos juravam que os olhos do macaco já morto eram capazes de seguir os passos de quem adentrava a tenda da velha anciã.

Um velho lenhador, que era filho dos primeiros habitantes do lugar era a autoridade jurídica do lugar. Seus conselhos eram lei e as pequenas e grandes confusões eram resolvidas por ele das formas mais inusitadas.

Podiam acabar em uma grande confraternização das partes, com direito a aguardente de garapa de mandacaru fermentada ou podiam acabar embaixo de uma bela sova que ele distribuía a golpes de folha de facão. Pois ele tinha uma objetividade quase que imaginável, sua lógica era de uma simplicidade salomanica e quando ele falava todos escutavam e esperavam a hora de começar a farrar ou a correr para se livrar de seus destemperos, quando não escapavam nem mesmo os cachorros vadios que tambem entravam embaixo da lei de seus espancamentos generalizados.

Mas, as autoridades patriarcais e matriarcais não se batiam bem.

Certa vez, o cabo Helio resolveu intervir em um dos julgamentos do velho lenhador e só escapou de morrer no pau, por causa dos dois soldados amarelos que o carregaram para longe do lenhador, mas fugiram com o delegado enquanto suas costas eram sovadas pelos braços hercúleos do velho lenhador. Depois desse dia, o cabo Helio passou a jurar o velho de morte e nunca mais os dois se encontraram. E se alguém não quisesse ver desgraça, não convidassem os dois para o mesmo local.

Era junho de 1900, quando durante os festejos juninos, os estrondos reapareceram com força e intensidade total, as casas mais frágeis ruíram. As pequenas barragens de areia desmoronaram, levando a água estocada durante o inverno, os rádios não funcionavam mais e as vacas não conseguiam soltar mais leite nem mesmo para seus próprios bezerros.

O perfume das flores do grotão começou a exalar seus perfumes narcotizantes cada vez mais fortes, e do fundo do grotão se escutavam gritos, miados, esturros e gemidos, como se tivessem jogado onças, crianças e amantes todos juntos e de uma vez só no funda da furna escura.

Os mais afoitos que resolveram descer a escuridão, incentivados pela curiosidade alheia, nunca mais regressaram. E no meio do mês de julho, alguém escutou o choro de uma criança vindo do fundo do grotão.

Pensava-se que era uma das crianças do lugar, mais uma rápida contagem certificou a todos que não era nenhuma criança conhecida. Organizaram equipes de busca durante meses, mas ninguém achava nada, e os que achavam que acharam algo eram tomados por uma fúria louca que os fazia insanos até que esquecessem o que achavam que tinham visto.

Os mais velhos começaram a se afastar cada vez mais do lugar, afinal nenhuma criança era capaz de passar dois meses chorando sem comer ou dormir. Já era Agosto quando alguém avistou no fundo do grotão, a sombra mínima de alguém a boiar nas águas escuras da furna.

Conseguiram içar o corpo e se assustaram ao ver que era a mais bela criança que todos já haviam visto. Aparentava mais ou menos uns cinco anos, sua pele era de uma delicadeza que só era permitida às pétalas das rosas, seus olhos tinham a vivacidade e a sagacidade dos felinos, seu olhar penetrante gelava quem tivesse a ousadia de fitar-lhe o semblante sério e sem nenhum sinal de sorriso, sem nenhuma alegria.

Os seus movimentos eram extremamente compassados e suaves, parecia mais com uma serpente que gente vivente, era capaz de levantar-se quase que ereto sem por as mãos no chão, como se fosse um mastro que fosse içado por cordas. Falava uma língua estranha e ininteligível, mas sua presença era tão forte que ele se fazia entender apenas pelo seu olhar, tão penetrantes quanto o mais fino e afiado punhal.

Ao levarem-no ate a cigana, esta estremeceu os dedos raquíticos e esqueléticos e foi taxativa: Matem-no agora antes que ela traga a dor e o sofrimento à nossa terra!

As mulheres a amaldiçoaram dizendo que tão bela criatura só traria felicidade para o vilarejo. Ao levarem-no até o velho lenhador, este se reservou ao direito de não opinar, mas simplesmente incendiou a própria casa e construiu outra, o mais distante possível do grotão e falava aos mais íntimos que aquela criança trazia dentro de si a luz da beleza apenas para encobrir o caos e as trevas que habitavam em seu coração.

O cabo Helio resolveu levar a criança até a comarca mais próxima para formalizar o achado de uma criança que talvez fosse de outro recanto da região.

Mas ao tentar por o menino na carroça para leva-lo, este lhe deu uma mordida, ao que o cabo revidou com um bofetão digno de ser aplicado no rosto do mais insensível e perigoso dos assassinos.

Foi quando pela primeira vez, o menino demonstrou sou estranha força psíquica que ninguém entendeu, nunca.

O menino olhou o cabo no fundo dos olhos e trincou os dentes, começou a resmungar num dialeto incompreensível e dos olhos do cabo começaram a brotar lagrimas de sangue, suas mãos suavam uma pasta negra e visguenta, ele começou a se afogar em seu próprio fôlego, vomitando rios de uma gosma amarela parda que borbulhava quando tocava o chão.

Acorreram ate o cabo na tentativa de salva-lo, mas já era tarde. Era como se um veneno estivesse lhe corroendo por dentro. De fato, depois de sete dias de coma onde suava sangue, o cabo começou a apodrecer de dentro para fora. Nem mesmo as poções da cigana conseguiram uma melhora. Ele começou a feder como um cadáver, suas veias se dilataram e incharam além de se movimentarem por conta própria dentro de sua pele. Parecia que havia serpentes zigue-zaguenado pelo seu corpo.

Este fenômeno fez com que a população se divide-se entre apoiar a cigana na idéia do infanticídio e mudar-se para longe do grotão junto com o velho lenhador, outros preferiram ignorar o fato como uma estranha coincidência, como mais um fato sobrenatural entre tantos ocorridos na região.

Após a morte do cabo Helio, não se viu grande falta de sua autoridade. E isso consolidou a posição da cigana e do velho lenhador.

(Continua)