sábado, 23 de maio de 2009

Ventre Negro - Capítulo 02

Na lua cheia de setembro, o cheiro de chuva no ar fez com que todos passassem a fitar os horizontes desde o alvorecer até o ocaso, mas foi preciso chegar o final dos dias de novembro para que a chuva chegasse com uma torrencialidade dilúvica tão grande que as lavadeiras que lavavam roupas na pouca lama que restava no leito do rio foram engolidas pela cabeçada da cheia que de tão grande e veloz, chegava antes mesmo do barulho dela própria. Um mês de chuvas bíblicas foram suficientes para destruir tudo o que restava do pequeno vilarejo que foi o vale do agreste.

As notícias da catástrofe foram recebidas com desdém pelos poderes constituídos que logo suspenderam as verbas de ajuda. Até o clero tratou de apressar as obras que tratavam da edificação de uma igreja na região, para assim aproveitar-se das chuvas para se vangloriar de seu intimo contato com Deus.


Os primeiros dias de novembro encontraram o vale todo verdificado e florido, parecia que o éden havia renascido na terra. O velho ipojuca espumava de vida, e a miríade de peixes era tão fabulosa que as redes jogadas pelos novos colonos eram fracas para tanta fartura e rebentavam numa explosão de peixes que saltavam até pelas margens.

No grotão parido pelos estrondos, escutava-se o borbulhar da água acumulada em seu interior. Os mais jovens e afoitos trataram de descer sua encosta para ver a quantidade d’água acumulada e falavam que nunca mais faltaria água na região. O grotão foi aos poucos sendo cercado de casas e um ano depois, no ano zero do novo século, nascia Gulutarã, que foi batizada assim pelos barulhos d’água do grotão e dos estrondos que nunca cessavam na região.

Era fevereiro de 1900, Gulutarã já contava com uma cadeia publica com dois soldados magros do pescoço fino, calçavam alpercatas de couro e vestiam uma farda de alvorada azul desbotado e carregavam cassetes de ipê como única arma para o controle legal do lugar.

O delegado era um enteado de um cabo eleitoral de um deputado que foi eleito sem Ter tido nenhum voto, mas que era um alcagüete de primeira e logo foi promovido ao posto que ocupava em gulutarã. Em seus desmandos de ébrio fardado, vivia metendo os pés pelas mãos e a cada dia, era mais temido do que respeitado, mais difamado do que conhecido; mais evitado do que cumprimentado. Era o cabo hélio, um negro afilado que primeiro batia, espancava e matava para depois perguntar quem era a vítima de seus caprichos sádicos e autoritários.

A igreja erguida pelo clero jazia no fim da rua principal, esquecida por todos pelo simples fato de que não contava com um padre. O único pároco da região residia a mais de 10 léguas e só aparecia na cidade para recolher os donativos mensais e quando alguém de posse tinha que batizar, casar ou encomendar a alma de alguém.

A única autoridade reconhecida no lugar era a de uma velha cigana, que por não poder mais correr o mundo, fincou as estacas de sua centenária barraca em gulutarã e ali ficou para esperar a morte, que lhe acompanhava desde criança, quando toda a sua tribo naufragou nos mares índicos e só ela sobreviveu por que, segundo ela, a morte teve pena de leva-la e prometeu seguir-lhe até que ela tivesse um lugar com a certeza de um tumulo eterno.

Ninguém fazia nada sem antes consulta-la. O plantio, a colheita, os casamentos, os batizados; enfim: tudo era regido, abençoado e ditado pela boca da cigana, onde já não havia mais nenhum dente. Sua risada tinha o poder de assustar as crianças, e seu cajado com a caveira de um macaco em seu topo era motivo de medo e apreensão, pois todos juravam que os olhos do macaco já morto eram capazes de seguir os passos de quem adentrava a tenda da velha anciã.

Um velho lenhador, que era filho dos primeiros habitantes do lugar era a autoridade jurídica do lugar. Seus conselhos eram lei e as pequenas e grandes confusões eram resolvidas por ele das formas mais inusitadas.

Podiam acabar em uma grande confraternização das partes, com direito a aguardente de garapa de mandacaru fermentada ou podiam acabar embaixo de uma bela sova que ele distribuía a golpes de folha de facão. Pois ele tinha uma objetividade quase que imaginável, sua lógica era de uma simplicidade salomanica e quando ele falava todos escutavam e esperavam a hora de começar a farrar ou a correr para se livrar de seus destemperos, quando não escapavam nem mesmo os cachorros vadios que tambem entravam embaixo da lei de seus espancamentos generalizados.

Mas, as autoridades patriarcais e matriarcais não se batiam bem.

Certa vez, o cabo Helio resolveu intervir em um dos julgamentos do velho lenhador e só escapou de morrer no pau, por causa dos dois soldados amarelos que o carregaram para longe do lenhador, mas fugiram com o delegado enquanto suas costas eram sovadas pelos braços hercúleos do velho lenhador. Depois desse dia, o cabo Helio passou a jurar o velho de morte e nunca mais os dois se encontraram. E se alguém não quisesse ver desgraça, não convidassem os dois para o mesmo local.

Era junho de 1900, quando durante os festejos juninos, os estrondos reapareceram com força e intensidade total, as casas mais frágeis ruíram. As pequenas barragens de areia desmoronaram, levando a água estocada durante o inverno, os rádios não funcionavam mais e as vacas não conseguiam soltar mais leite nem mesmo para seus próprios bezerros.

O perfume das flores do grotão começou a exalar seus perfumes narcotizantes cada vez mais fortes, e do fundo do grotão se escutavam gritos, miados, esturros e gemidos, como se tivessem jogado onças, crianças e amantes todos juntos e de uma vez só no funda da furna escura.

Os mais afoitos que resolveram descer a escuridão, incentivados pela curiosidade alheia, nunca mais regressaram. E no meio do mês de julho, alguém escutou o choro de uma criança vindo do fundo do grotão.

Pensava-se que era uma das crianças do lugar, mais uma rápida contagem certificou a todos que não era nenhuma criança conhecida. Organizaram equipes de busca durante meses, mas ninguém achava nada, e os que achavam que acharam algo eram tomados por uma fúria louca que os fazia insanos até que esquecessem o que achavam que tinham visto.

Os mais velhos começaram a se afastar cada vez mais do lugar, afinal nenhuma criança era capaz de passar dois meses chorando sem comer ou dormir. Já era Agosto quando alguém avistou no fundo do grotão, a sombra mínima de alguém a boiar nas águas escuras da furna.

Conseguiram içar o corpo e se assustaram ao ver que era a mais bela criança que todos já haviam visto. Aparentava mais ou menos uns cinco anos, sua pele era de uma delicadeza que só era permitida às pétalas das rosas, seus olhos tinham a vivacidade e a sagacidade dos felinos, seu olhar penetrante gelava quem tivesse a ousadia de fitar-lhe o semblante sério e sem nenhum sinal de sorriso, sem nenhuma alegria.

Os seus movimentos eram extremamente compassados e suaves, parecia mais com uma serpente que gente vivente, era capaz de levantar-se quase que ereto sem por as mãos no chão, como se fosse um mastro que fosse içado por cordas. Falava uma língua estranha e ininteligível, mas sua presença era tão forte que ele se fazia entender apenas pelo seu olhar, tão penetrantes quanto o mais fino e afiado punhal.

Ao levarem-no ate a cigana, esta estremeceu os dedos raquíticos e esqueléticos e foi taxativa: Matem-no agora antes que ela traga a dor e o sofrimento à nossa terra!

As mulheres a amaldiçoaram dizendo que tão bela criatura só traria felicidade para o vilarejo. Ao levarem-no até o velho lenhador, este se reservou ao direito de não opinar, mas simplesmente incendiou a própria casa e construiu outra, o mais distante possível do grotão e falava aos mais íntimos que aquela criança trazia dentro de si a luz da beleza apenas para encobrir o caos e as trevas que habitavam em seu coração.

O cabo Helio resolveu levar a criança até a comarca mais próxima para formalizar o achado de uma criança que talvez fosse de outro recanto da região.

Mas ao tentar por o menino na carroça para leva-lo, este lhe deu uma mordida, ao que o cabo revidou com um bofetão digno de ser aplicado no rosto do mais insensível e perigoso dos assassinos.

Foi quando pela primeira vez, o menino demonstrou sou estranha força psíquica que ninguém entendeu, nunca.

O menino olhou o cabo no fundo dos olhos e trincou os dentes, começou a resmungar num dialeto incompreensível e dos olhos do cabo começaram a brotar lagrimas de sangue, suas mãos suavam uma pasta negra e visguenta, ele começou a se afogar em seu próprio fôlego, vomitando rios de uma gosma amarela parda que borbulhava quando tocava o chão.

Acorreram ate o cabo na tentativa de salva-lo, mas já era tarde. Era como se um veneno estivesse lhe corroendo por dentro. De fato, depois de sete dias de coma onde suava sangue, o cabo começou a apodrecer de dentro para fora. Nem mesmo as poções da cigana conseguiram uma melhora. Ele começou a feder como um cadáver, suas veias se dilataram e incharam além de se movimentarem por conta própria dentro de sua pele. Parecia que havia serpentes zigue-zaguenado pelo seu corpo.

Este fenômeno fez com que a população se divide-se entre apoiar a cigana na idéia do infanticídio e mudar-se para longe do grotão junto com o velho lenhador, outros preferiram ignorar o fato como uma estranha coincidência, como mais um fato sobrenatural entre tantos ocorridos na região.

Após a morte do cabo Helio, não se viu grande falta de sua autoridade. E isso consolidou a posição da cigana e do velho lenhador.

(Continua)

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