sábado, 23 de maio de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 02

Mas eu nem sempre fui assim, houveram fatos que me fizeram ver a imoralidade perversa da felicidade.

Ele era uma pessoa estranha, obsessivo e maníaco, com um certo charme que me atraiam. O tipo de pessoa que já passou por todas as culturas, filosofias, políticas e letras. Com todos os motivos do mundo para ser amargo e infeliz, ele sempre sorria.



Às vezes tinha vontade de socar aquele sorriso cínico que ostentava em sua face. Nem quando foi diagnosticado o seu segundo câncer ele abalou o riso meio simples, meio maquiavélico.

Eu o conheci num bar, seu habitat natural, fui seduzido pela sua conversa firme, usava um técnica interessante de manipulação da conversa e sempre acabava levando o ponto ao seu ponto de vista.

Naquele momento, ele flertava com 3 mulheres diferentes, sentadas em mesas diferentes e com padrões também completamente diferentes entre si, achei absurdo seu comportamento estranho, mas ri assim mesmo quando o vi levar um fora de uma delas, depois um tapa na cara de outra e por fim ser acudido pela terceira. Depois perguntei como tinha conseguido ficar com a terceira e ele me respondeu com uma simplicidade obscena: “fácil, menti.”

Gostei dele e após outros encontros, ele me convidou para caçar, que na época era um de meus hobby prediletos. Seu arsenal era maravilhoso. Dois rifles 22 de repetição com luneta telescópica que chegava até a tirar a graça da caçada. Ri do fato dele estar usando luvas e um casaco de mangas longas que não combinavam com o calor infernal que nos abraçava. Nos embrenhamos no mato e ficamos horas conversando em sussurros ate que acertei a asa de um pássaro e ele caiu agonizante. Para não gastar munição a toa, peguei o pássaro e torci o seu pescoço e ele riu calado, não dei atenção e fomos em frente. Saímos de lá com varias peças de caça penduradas pelos pés, ao chegarmos em minha casa, avistei uma barata e pisei nela e ele riu novamente num tom desafiador.

Indaguei-o sobre o porque dos sorrisos e ele me falou: “Bom... pássaros e insetos já vi que consegue. Falta um alvo mais a altura.”. Não entendi bem na época, pois ainda não tinha vislumbrado todo o quadro. Achei que ele tava brincando, mas aquele tom de voz marcou-me como o momento que comecei a entender algumas missões, algumas pessoas; algumas coisas.

Comemos e mesmo tendo me interessado pelo que ele havia dito, não toquei mais no assunto.

Na manha seguinte fui até a sua casa, um sobrado isolado nos limites da cidade. Seu interior de piso de ipê com teto alto e parede cor de menta destoava da bagunça de livros, revistas, embalagens de fast-food espalhadas pelos móveis. De seu computador zunia uma música minimalista numa cadencia suave que enchia todo o ar.

As fotos espalhadas pelas paredes mostravam uma vida agitada e feliz, com imagens de seus filhos, parentes e de sua ex-esposa. Atrevi-me a perguntar sobre eles mas minhas palavras esbarram num silêncio sério e triste.

Ele me recebeu vestido com a mesma roupa do dia anterior, inclusive com as luvas de couro. Estranhei, mas na hora achei que era mais uma de suas manias exóticas.

Tomamos umas cervejas e depois jogamos algumas rodadas de dominó regadas a uma excelente cachaça. Já estava meio alto e nos levantamos para espairecer um pouco.

Os fundos de sua bela casa dava para o rio, numa parte onde ele era rodeado de algarobas frondosas, algumas já haviam caído e seus troncos mergulhavam na água enquanto suas raízes secas apontavam para o céu.

Estávamos a vários metros de altura em relação ao chão de seu quintal, uma maravilhosa vista nos esperava. Enquanto o céu já se desbotava pelo drinks que havia bebido, os pássaros sobrepunham suas vozes sobre a harmonia monótona de Phillip Glass que tocava sem parar dentro da casa.

Enquanto eu divagava absorto em meus pensamentos, ele foi até o interior e veio com os rifles usados no dia anterior. Achei que iríamos treinar um pouco, já que não havia ninguém por perto, a residência mais próxima ficava a alguns quilômetros de distancia. De fato, brincamos um pouco com as armas e depois desatamos numa conversa regada a mais cerveja.

Falávamos de técnica de tiro, de armas e munições e não sei em que momento a conversa enveredou para moral, ética e uns conceitos que ainda não entendia bem. Deliberadamente ele me guiou pela conversas, manipulando minhas respostas e ponderações até que começamos a discutir sobre a moralidade de matar. Discorremos sobre esse assunto por horas, o sol já se deitava no horizonte pintando o céu com um alaranjado meio vermelho, fazendo do firmamento um palco sombrio para os últimos pássaros que passavam em revoada.

No meio do assunto, ele exemplificou a horda de mendigos que assolavam as cidades, com seus furtos, com a sujeira e a violência que teria aumentado com a vinda deles.

Nessa época, a cidade passava por um surto de crescimento econômico, e as alvíssaras da fartura se espalharam pela região trazendo mais pessoas para a sombra dessas promessas de uma vida melhor. A cidade sofreu varias transformações, e uma delas foi o aumento da violência e da pobreza.

Estrategicamente disposto sobre a mesa, havia um jornal cuja manchete destacava os números da violência, com estupros, assassinatos, roubos e toda a sorte de malefícios atribuídos à população advinda de fora em busca do “eldourado”. Ele foi lendo em voz alta e repetindo números e palavras, como se quisesse que as informações ficassem gravadas nas minhas retinas. Ao final da didática aula sobre as estatísticas locais, ele levantou-se e foi para a murada da sacada, me chamou e falou: “Olhe embaixo daquela arvore!”. Forcei a vista e na quase escuridão do ocaso distingui um vulto, uma forma humana deitada na sobra das arvores, alguém esfarrapado, um mendigo eu achei. Ele estava deitado de costas para nós sob a sombra de uma velha algaroba que se debruçava sobre o leito dor rio. Já havia visto alguns como ele que vez por outra apareciam nos arredores: Sujos, maltrapilhos. Almas indigentes sem rumo ou utilidade.

Ele pegou o rifle com o qual havíamos caçado e apontou para o mendigo, achei que estava brincando e pedi para ele ter cuidado pois poderia provocar um acidente. Mal acabei a frase e escutei o estampido que ao invés de me trazer a tona da realidade, ecoou pelo que parecia ser uma eternidade, senti meus olhos esbugalharem e minhas pernas cederem ao peso do meu corpo. Eu olhava para ele e não acreditava: ele atirou em alguém! Minha boca estava seca, tudo girava, sentia minhas víceras se revolvendo dentro de mim e por mais que tentasse falar alguma coisa, não conseguia esboçar nenhuma reação.

Ele continuava impassível, acendeu seu cigarro, tragou profundamente e soprou a fumaça para cima. Olhando para a brasa ele perguntou:: “Qual a imoralidade que pratiquei agora? Quem é o verdadeiro juiz de nossos atos? Que falta aquele ser do outro lado rio fará ao mundo?” tentei argumentar, mas nada fazia sentido, meus lábios estavam secos e minha garganta parecia que havia sido queimada. Ele continuava a me olhar como se nada tivesse acontecido, eu evitava olhar para o rifle mas não parava de pensar que eu estava com um louco, com um homicida e que provavelmente eu seria o próximo de sua lista de expurgos. Ele sentou-se, abriu a geladeira portátil e me jogou uma cerveja. Naquela hora eu teria bebido qualquer coisas, pois não conseguia nem mais respirar direito.

Reuni minhas forças e falei que era melhor ir embora. Ele sorriu e me apontou o outro lado do rio: “é melhor nos livrarmos dele antes”. Argumentei que não queria nenhuma participação, que estávamos bêbados e que era melhor eu ir embora. Então escutei algo que fez meu universo desmoronar: “Mas você participou sim! Afinal,suas digitais estão nesse rifle, qualquer exame em suas mãos vai mostrar os resquícios de pólvora de nossa caçada de ontem.”.

Senti vontade de pular em cima dele, mas me contive ao ver o rifle em suas mãos enluvadas. As luvas! Foi para isso que elas serviram juntamente com o casaco de couro! Minhas digitais na arma, resquícios de pólvora pelas minhas mãos e braços!.

Enquanto eu pesava todo o acontecido, ele se levantou e me estendeu um celular com uma mão e o rifle com a outra e mandou que eu escolhesse: ligar para a policia ou terminar o que ele havia começado. Como assim? Terminar o que? Ele então revelou que não havia sido um tiro fatal e que se observasse bem ele ainda respirava. Eu olhava, mas já era impossível distinguir um detalhe desses, ainda mais pela distancia, pelo álcool e pela noite que já havia chegado.

Mas se ele está vivo, podemos fazer algo por ele! Mas como que lesse meus pensamentos ele me deu uma terceira opção: ligar para o hospital vir salva-lo e continuar com a sua vida miserável atrapalhando a vida de outras pessoas, espalhando suas doenças e misérias, disseminando mais um batalhão de indigentes pela rua. Porem eu ainda teria que explicar minhas digitais na arma.

Minhas mandíbulas doíam de tanto ranger o dentes pensando em uma saída. Enquanto isso ele martelava minha cabeça repetindo todas as estatísticas que havia lido antes. Ligar para a policia ou para o hospital estava fora de questão, as duas opções me levariam a um processo ou até mesmo à prisão em flagrante. Falei que deveríamos ir até o outro lado do rio e vermos de perto. Ele topou, saltou da cadeira e me entregou o rifle e falou: “mas depois que você provar o quanto é bom de mira!” argumentei que havia bebido, que estava escuro mas de nada adiantou. Ele tirou um pequeno binóculo do bolso e mirou no outro lado do rio e falou: ”vamos... estou esperando!”.

Não sei bem o que aconteceu comigo naquele momento, mas pela luneta do rifle observei que nada se mexia do outro lado, que o tiro dele deveria ter sido fatal mesmo e que um tiro a mais em um cadáver não seria de todo ruim já que serviria para me tirar daquela situação maluca.

Respirei fundo, calculei a mira e para tentar mostrar segurança perguntei “Onde você quer?”, “na cabeça” ele respondeu. Passei longos segundos analisando pela mira telescópica para ver se via algum sinal de movimento... nada!

Respirei mais fundo e fixei a mira na nuca do corpo inerte do outro lado e puxei o gatilho. Um longo estampido ecoou.

Quando dei por mim, estávamos dentro de um bote atravessando o rio, munidos de lanternas pás e enxadas. Ao tocar na outra margem, um frio percorreu minha espinha. Descemos e ao iluminar o corpo ele exclamou: “Belo tiro!”, tentando parecer calmo, falei: “Mas foi o seu que o derrubou primeiro.” E ele respondeu: “O meu? Você esta vendo alguma outra perfuração? Você por acaso está vendo algum sangue saindo de outro lugar que não seja o buraco que você fez na cabeça deste infeliz?”

Gelei na hora! Não conseguia acreditar em tudo o que estava acontecendo. Senti que minha visão se turvava e que minhas pernas tremiam. Vi luzes piscando na minha frente e aos poucos a escuridão se apoderou de mim e desfaleci.

(Continua)

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