sábado, 16 de maio de 2009

Ventre Negro - Capítulo 01

Os primeiros sinais começaram a aparecer dois anos antes da terra parir o grotão no agreste, eram discos luminosos que riscavam o céu sempre antes do anoitecer. Seis meses depois todos os pássaros sumiram do vale que compreendia desde o morro do bom Jesus até onde o rio Ipojuca fazia uma curva e serrava uma pequena montanha de pedra ao meio. Os mais velhos atribuíram o fenômeno à seca que neste ano era mais causticante que nunca, quem andava sob o sol não podia sentir o suor a escorrer, pois a pele de tão seca reabsorvia os suores antes mesmo dele sair.

Faltando um ano para a virada do século, todas as fêmeas do vale, incluindo as mulheres, abortaram suas gestações sem nenhuma explicação aparente. Por estas épocas, boa parte da pouca população começou a fugir do lugar, com medo dos estranhos acontecimentos que começaram a acontecer em todo a região do agreste. Na margem direita do velho Ipojuca, onde as águas cavaram as pedras e formaram uma corredeira, surgiu um imenso jardim de flores silvestres desconhecidas, donas de um perfume tão forte, que os viajantes se desviavam de seus caminhos, atraídos por dolorosa sensação de nostalgia que emanava do local.

Em abril de 1899, o governo estadual decretou estado de calamidade pública em toda a região, pois todo os rebanhos morreram, os reservatórios secaram e o cheiro de carniça na região fazia com que aparecessem ulceras nas narinas daqueles que se recusaram a deixar o vale do agreste. Era julho de 1899 quando mesmo depois dos festejos juninos começaram a se ouvir explosões que estremeciam a terra, alguns pensavam que eram bacamarteiros que ainda disparavam suas seculares armas em pedido de benção e chuvas aos padroeiros do mês junino, mas os mais sensíveis logo descobriram que as explosões que faziam cair o reboco das paredes e até tremer a olhos o monólito imenso da Pedra do cachorro, não eram escutadas pelos ouvidos. Os fantásticos estrondos eram sentidos dentro do peito, que de tão fortes faziam tremer os tímpanos e aparentar que eram sons audíveis. Eram acontecimentos estranhos e terríveis para uma população isolada e supersticiosa. O povo que muito pouco ou quase nada sabia do mundo, sentia que o medo se instalava no lugar.

Por estas épocas, o vale do agreste era um sítio esquecido pelo mundo, onde nunca se soube de nada relativo ao progresso. Era apenas um arruado de casas que começava na margem do rio e terminava no pé do morro do bom Jesus. Não existia luz elétrica e a única comunicação com o mundo, além do rádio, eram os tropeiros trazendo-lhes notícias, mantimentos, alegrias e facilidades do novo século que se aproximava. Além dos tropeiros, às vezes se achegavam ao lugar uma tribo de ciganos que vagavam pelos sertões em busca de freguesia para suas alquimias, encantos e truques mágicos. Aos tropeiros eram dispensadas as poucas regalias do lugar, mas aos ciganos restavam apenas o direito de passagem rápida e a fama falsa de milenares ladrões de crianças e cavalos. Mas se desconfiavam do povo nômade, inexplicavelmente tinha a mais absoluta fé em suas predições e nunca deixavam de segui-las, mesmo se uma destas predições mandasse o infeliz incauto jejuar durante três dias, e ao quarto dia se alimentasse de lodo, raspa de fundo de panela e asas de grilo. Como única forma de curar uma dor de amor desfeito.

Além do telegrafo instalado na estação ferroviária que nunca chegou a receber nenhum trem (pois as serras que separavam o vale do agreste do mar eram intransponíveis, mas as estações que receberiam as composições ao longo da linha foram todas inauguradas com festas regadas a promessas e politicagens.), a única comunicação com o mundo era os poucos rádios que existiam no local, mas as notícias de chuvas e fartura que vinham de longe faziam com que os habitantes se sentissem cada vez mais tristes, e mesmo as músicas mais belas e alegres eram incapazes de trazer-lhes o sorriso de volta a face. Mesmos os mais alegres e otimistas já nem se lembravam do som de suas próprias risadas. Os rádios não eram mais ligados para que não trouxessem más lembranças boas.

O povoado exalava uma tristeza sem fim, desde os mais jovens até os anciões traziam nos cantos da boca as marcas da falta de sorrisos, da melancolia que já fazia parte da vida que viviam

(continua em uma outra postagem)

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