terça-feira, 9 de junho de 2009

Ventre Negro - Capítulo 03

Chegava setembro de 1900 e a região se viu infestada de criaturas noturnas que empestaram o local. Eram morcegos, rasga-mortalhas, bacuraus, sapos cantantes e cachorros selvagens fugidos de seus lares e esquecidos do contato com o homem. Alguns acidentes começaram a acontecer na mesma noite em que a criança ainda sem nome sumiu e ninguém sabia de seu paradeiro.

As cabras e galinhas apareciam degoladas e sem uma única gota de sangue a correr em seus vasos. Algumas crianças mais afoitas ou desavisadas eram encontradas pela manhã, totalmente dilaceradas e aparentavam-se com um pão molhado de sangue. Foram sete dias de matança e sangue até que a velha cigana avisou a todos que a culpa era da criança sem nome, e que ela poderia ser encontrada novamente boiando nas águas do grotão.

De fato, ao chegarem lá e apos trazerem-na de volta ao povoado, os acidentes cessaram apesar das tais criaturas continuarem a infestar o lugar. Ao perguntarem à cigana como ela sabia do paradeiro da criança, ela suspirou num gemido profundo e disparou: “Não sei, mas quem sabe de alguma coisa nessa vida?”

Todas as tentativas de achar a família do menino, para assim terem um pretexto para levarem-na para o mais longe possível mostraram-se infrutíferas. E a cada segundo que o menino passava longe do lugar a procura de sua família, novos ataques dos seres noturnos se reiniciavam.

Ao final de 1900, descobriu-se que a criança tinha o poder se sumir à noite sem que ninguém notasse e fosse parar no leito do ventre escuro que o gerou. Apenas a cigana e o velho podiam notar com antecedência mútua quando ele estava prestes a iniciar sua fuga e conseqüentemente os acidentes que ninguém mais acreditar serem simples acidentes.

Os mais surperticiosos Começaram a arquitetar a morte da criança, mas a cada tentativa frustrada, eles eram tomados pela loucura e se jogavam no fundo do grotão, para a morte. Os que eram detidos antes do suicídio tinham que ser amarrados até que a loucura os levasse ao fim.

A cada tentativa de qualquer ato contra o menino era revidada pela noite que parecia obedecer ao resmungo sem fim e sem sentido que ele desfiava incessantemente.

Conseguiram trazer o bispo da região que ao ouvir o menino foi primeiro a descobrir que a criança falava em latim. Seu primeiro ato foi querer leva-lo para o convento para que em caso de ser um Dom de deus, ele fosse exultado e se for obra de satã para que através da penitencia e do isolamento sua alma fosse salva.

Mais uma vez a população se viu dividida para escolher a ida do menino e talvez assim exterminar seus infortúnio malignos ou fechar-se em suas casas a noite com medo das incursões das assombrações, como começaram a ser chamados o integrantes séqüito noturno que semeava a morte no lugar.

O clero decidiu por todos e levou o menino após as festas do ano novo, na própria carruagem do bispo que veio pessoalmente busca-lo. Era uma manhã quente e tediosa, os poucos pássaros de passagem pelo lugar calaram-se, o céu não tinha nenhuma nuvem, o calor era tão grande que faziam os pregos das portas rangerem e entortarem-se como se estivesse derretendo. A partida estava marcada para após a sesta do almoço, mas estranhos acontecimentos foram atrasando a viagem a cada minuto. Uma hora eram os cavalos do cocho do bispo que adormeceram inexplicavelmente, depois foi uma diarréia insuportável, experimentada pelo representante do clero, e até um raio caiu sem nenhuma nuvem no céu e espatifou o cocheiro em centenas de pedaços pretos e fumegantes como pedras de carvão ardente.

Mas o bispo conseguiu embarcar às seis da tarde e após o cortejo virar a primeira curva da estrada, os cavalos pararam e o cocheiro reserva jnto com o bispo saltaram do veículo e saíram correndo em direção ao grotão. O povo tentou impedi-los já sabendo o que iriam fazer, mas não conseguiram segura-los e mais duas vítimas foram tragados pelo ventre negro.

O menino foi encontrado brincando placidamente com o rosário do bispo dentro do coche. Levaram-no ainda dentro da carroça ao pátio da igreja. A população não ligava mais se sua morte fosse amaldiçoar a todos, se seu fim traria a loucura a todos, se sua morte decretasse a morte de todos. Estavam prontos para apedrejarem aquela criatura até seu ultimo suspiro de vida.

Como num impulso inconsciente e coletivo, todos se armaram de paus, pedras, foices ou qualquer outra coisa que estivesse à mão e cercaram o coche do bispo. Foi quando ele começou a emitir uma luz estranha, que ao invés de iluminar, apagava as luzes vindas das tochas, candeeiros e lampiões que o cercavam no pátio da igreja para onde foi levado. Foi exatamente ali naquela hora que ele falou em um português claro, bom e fluente, foi quando todos tiveram consciência que sua voz era formada pela mesma coisa que formava os estrondos da terra, pois sua voz não era ouvida nos ouvidos, e sim dentro das cabeças, dentro do peito.

A criança murmurou que eles estavam presos a ele, e que essa cadeia nunca haveria de ser quebrada. Sorrindo um sorriso belo como os dos anjos, falou que aquela era sua terra e aqueles eram os escolhidos para cuidarem dele. Foi quando alguns dos mais exaltados se precipitaram sobre ele, mas não conseguiam toca-lo, sua voz suave enfeitiçava e embriagava quem a escutava.

O velho lenhador que a tudo assistia em silêncio perguntou-lhe:

- Se somos escolhidos, o fomos por alguém. Quem nos escolheu?
- Suas escolhas foram feitas antes do tudo ser algo, suas escolhas foram feitas quando ainda daqui não eram; suas escolhas foram feitas antes da noite eterna parir a luz.
- Então ainda temos escolhas?
- Sim, mas antes dos novos plantios serem escolhidos, é necessário a colheita do que já foi semeado.
- Mas se fomos escolhidos por nós mesmos, e se a colheita já iniciou com sua chegada, o que nos falta colher?
- O trigo e o Joio, para mas não poderão separar e o pão terá que ser amargo. Só os fortes agüentam o pão amargo, os covardes morrerão de fome.
- Não entendo nada do que você esta falando moleque!
- Não é uma questão de aprender, e sim de lembrar.

A cigana resolveu se meter na conversa e perguntou-lhe:

- Você fala com a língua bifurcada da serpente, você complica mais do que esclarece. Quem é você afinal?
- Ora, o salvador fala através das parábolas.
- E você se intitula a salvação?
- Eu me intitulo O filho.
- E quem é seu pai?
- Se sou filho, sou semente, se sou semente já fui fruto e para ser fruto tive que ser gerado. Tudo o que existe foi gerado apenas em uma fonte e desta fonte viemos todos. O nome de meu pai é inominável e nunca foi nem poderá ser escrito.
- Então você nega ser filho de Deus e aceita o demônio como pai?
- Defina Deus!
- Deus é o pai da bondade e da verdade, é a luz dos caminhos; é a ausência da escuridão!
- Muito bonito, mas defina Demônio!
- É o mal, o pai da mentira e a perversão das virtudes, é a ausência da luz e a fonte de todas as desgraças do mundo!
- Então um é a luz e outro a escuridão, um cuida da verdade e outro da mentira; enquanto um guia o outro perverte?
- Sim! Isso não torna tudo claro?
- Não, já que parece serem os dois iguais em poder e tamanho.
- Blasfêmia! Você é o filho do tinhoso! do coisa-ruim! do canhoto! Do pé-de-bode!

A essa altura, ninguém entendia mais nada. Os poucos que ainda estavam sóbrios sem terem sidos afetados pela narcose da voz da criança se olhavam sem entender a maior parte das palavras trocadas pelos três. O lenhador se aproximou da cigana e fitando-lhe com um olhar de reprovação murmurou para que ela se calasse, que ali não era lugar nem hora. Depois ele apontou com os olhos para o povo e ela notou que todos olhavam para ela com ares ameaçadores , tomados por uma embriagues desconhecida.

(Continua)

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