quarta-feira, 17 de junho de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 04

Um rosário pendia do retrovisor do Toyota bandeirantes azul, acompanhando o chacoalhar da estrada. No pára-brisa, um adesivo exclamava: “...A verdade vos libertará...”, mas por mais que tentasse imaginar essa liberdade eu não conseguia pois a verdade dos fatos recentemente ocorridos parecia me aprisionar cada vez mais.Sentado de lado na parte traseiro do veículo (reformado de forma que acomodava 17 pessoas mais as suas bagagens), eu tinha a traseira aberta do carro à minha direita.

Eu observava os ocupantes, pessoas simples e rudes. Alguns tinham a face sulcada pelo tempo e as marcas de uma vida dura. As mulheres estampavam sua simplicidade com maquiagens carregadas enquanto as crianças pareciam animais assustados sob o domínio dos pais severos. Na direção ia um homem muito loiro de olhos azuis e estatura hercúlea, só escutei a sua voz quando ele se aproximou de nós dois ainda no bar na beira do rio e perguntou se estávamos indo para a cidade. Ao sim da resposta ele perguntou qual era nossa bagagem e minha companhia apenas apontou para o barco que já havíamos retirado da água do rio.

- Ê patrão! Isso vai sair caro!
- Mas meu amigo, não perguntei o preço!
- Mas vão ficar aonde?
- Depois da cidade, onde o rio começa a entrar nela.
- Olha, não faço essa rota, no máximo posso deixa-los na rodovia.
- Pena que outra pessoa vai ganhar para fazer a mesma coisa.
- Paga adiantado?
- Você nos deixa lá antes de todos?
- Lógico que não!
- Então pagaremos quando chegarmos lá, parece-lhe justo?
- Sim, pode ser.

Uma coisa não podia ser negada NUNCA: Ele sempre teve o dom da persuassão, a lábia dele e a sua capacidade de manipular as palavras alheias beiravam ao insano.

E num movimento que parecia fácil, o motorista levantou a proa do pesado barco até deixá-lo na vertical, depois apoiou nas costas e arrastou até o carro. Com ajuda de alguns passageiros, colocou o barco em cima do carro e habilmente o amarrou lá em cima.

- Vamos embora!

Foi a última vez que escutei a sua voz.

No caminho, muitas vezes a estrada passava próximo ao rio, a simples visão do caminho d´agua que percorremos durante a noite e a madrugada me fazia arrepiar a nuca. Eu tentava desviar o olhar mas quando olhava para frente via o rosário a balançar e mais uma coleção de imagens de homens santos colados no painel do carro, além de adesivos com citações bíblicas. Nunca fui religioso, mas os ensinamentos antigos acerca do certo e errado e da vida e da morte, naquele momento me faziam sentir-se culpado. E não era para menos!

Desviar o olhar para os outros passageiros me deixava nervoso também. Suas feições simples, roupas amarrotadas e o cheiro forte da lida no campo me faziam lembrar do corpo que alvejei na noite anterior.

Olhar para frente me fazia olhar para minha doentia companhia que parecia cochilar sossegadamente , acompanhando os solavancos do caminho.

Restava-me olhar para a estrada que ia ficando para trás pela traseira aberta do carro. O chão parecia fugir rapidamente, formando uma imagem monótona e hipnótica à medida que as faixas pintadas nos asfalto iam se sucedendo uma após outra. Depois de todas as cervejas e do cansaço da noite em claro, aquele sacolejar ritmado e aquela estrada passando por mim, indo embora para o nada, me fizeram entrar num mundo de penumbras e sombras, onde adormeci e tive um sonho muito real. Não pela sensação, mas pela lembrança dos detalhes dele (coisa que raramente me lembro de meus sonhos).

No sonho, eu não havia ido até a casa dele naquele dia. Eu havia ido pescar na beira do rio, e em certo ponto do sonho eu vi o barco descendo o rio com nós dois dentro. O detalhe é que o defunto vinha nadando compassadamente atrás do barco, e cada vez que ele se virava para dar mais uma braçada eu vislumbrava seu rosto despedaçado. Ao chegar na curva do rio a estranha procissão aquática sumia, mas logo tornava a aparecer novamente na parte de cima do rio, repetindo a mesma cena infinitas vezes. Até que na última passagem, o barco tomou minha direção na margem. Mas apenas eu estava no barco e o outro passageiro agora nadava junto com o falecido. Ao chegar na margem, vi a mim mesmo desembarcar e logo depois os dois acompanhantes vierem se arrastando, como se destroçados em suas estruturas. Neste momento fui acordado pelo barulho do barco sendo retirado de cima do veiculo.

Demorei a me localizar, pois não sabia onde estava. A tarde já começava a ir embora e agora éramos apenas três naquela parte deserta da estrada junto ao rio. Eu me sentia um zumbi, desnorteado e sem noção do que estava acontecendo. Apenas ajudei a descarga e a colocação do barco no rio. Vi quando ele retirou várias notas do bolso e em silencio foi entregando uma a uma ao motorista. A cada entrega, uma troca de olhares acionava a entrega de mais uma nota, até que o motorista ficou satisfeito e sem falar uma palavra despediu-se com um aceno e foi embora. Entramos no barco, e com remadas fortes ele pôs o barco no meio do rio, que alcançou a correnteza central e saiu singrando as águas calmas.

Mais uma vez vi as aves preparando-se para se recolher por sobre as águas do rio. Parecia que o pesadelo começava novamente.

Após algumas horas, comecei a divisar os perfis da cidade ao longe. Primeiro foi um lixão, com as ratazanas se movendo rápido por entre os dejetos ali jogados, depois foi o cheiro forte dos primeiros esgotos jogados nas águas. Passamos por baixo de pontes que mostravam-nos a sujeira acumulada pelas décadas de cheias que depositavam os mais estranho objetos em suas estruturas.

Faltando alguns quilômetros para que o rio se tornasse definitivamente urbano, os primeiro casebres começaram a aparecer. Primeiro eram alguns poucos isolados, depois mais alguns e depois uma enorme favela se debruçava nas margens do rio.

Eram pessoas simples, pobres, famintas e curiosas. Olhares desconfiados e gananciosos nos fitavam enquanto eu sentia uma enorme angustia me tomar por completo. Cada um daqueles esfarrapados me remetiam ao corpo inerte na beira do rio. Era como se cada par de olhos daqueles soubessem que eu havia matado um dos seus, e que a qualquer momento eles avançariam pelas águas e tal qual um bando de piranhas ferozes fossem me destruir por completo. Encolhi-me dentro do barco e comecei a evitar olhar para as margens, mas o cheiro da favela já era o nosso terceiro passageiro rio abaixo. Um cheiro muito parecido com o que estava no corpo que encontrei abatido por mim mesmo.

Neste momento, o estranho capitão de nossa embarcação enfiou o remo na popa do barco, fazendo com que a velocidade diminuísse. Instantaneamente tomei os dois remos de suas mãos, me posicionei no centro do barco e remei, remei com todas as forças que nunca sabia que tinha, remei como se fugisse do inferno. Remei desesperadamente, pois realmente estava fugindo do inferno.

No meio do barulho dos remos na água, misturado com o palpitar do meu coração que parecia ter se mudado para meus ouvidos, escutei:

- Não adianta...
- O que não adianta?
- Por mais que alguém possa fugir de uma barata, elas ainda estarão por lá, sempre a espreita.
- Do que você esta falando agora caralho?
- De seu medo deles. Sossegue! Alem de mim, ninguém mais sabe que você matou um deles. Ninguém saberá que você pisou em uma barata. E quer saber do que mais? Muita gente também pisa nas baratas, muita gente pode até não pisar por medo ou nojo, mas com certeza apóiam os que pisam.
- Não tenho medo de baratas, alem disso acho que estamos falando de pessoas, de humanos.
- Não finja. Ontem eu não precisei de muito esforço para manipular suas opiniões e trazer a tona o que você pensa sobre essa gente. Foi fácil porque estava fácil.
- ...
- Veja só: Qual a diferença que fez ao universo o acontecimento de ontem? O que mudou no planeta? O que mudou nesta cidade?
- Minha vida inteira? Que tal isso? Até ontem eu estava em paz comigo mesmo, e hoje não consigo nem olhar para meu reflexo na água sem sentir-se sujo, com medo e com essa sensação de perseguição que parece que vai me afogar a qualquer momento.
- Isso vai passar, acredite. Você consegue se lembrar de sua primeira vez com uma mulher? Do medo antes, do medo durante, e da maravilhosa sensação do depois? Talvez já na segunda vez, você já não tenha tido medo no durante, só antes. Talvez até hoje o antes lhe amedronte um pouco pela incerteza das possibilidades futuras. Mas de qualquer forma, você não me parece o raríssimo tipo de pessoa que nunca mais foi atrás do prazer que reside entre as pernas de uma mulher. Vicia, né?
- Há! Lógico que a comparação é perfeita! Uma foda com um assassinato! Meu Deus! Eu até riria, se não fosse essa enorme vontade de mergulhar no fundo desse rio para nunca mais voltar! Você é louco! Comparar uma foda com um assassinato! Alguém por favor me acorde! A cada minuto minha vida esta ficando mais fudidamente surreal! Meu amigo: sexo sempre tem amor, romance! Mesmo quando se paga a alguém pelo sexo, existe no mínimo uma busca por prazer!

Neste momento já estávamos bem no meio da cidade, e nossa atenção se voltou para a margem direita onde alguém gritava por socorro. Na margem, quase na água; uma mulher gritava por socorro enquanto um homem a atacava, rasgando suas roupas e esbofeteando sua face. A escuridão naquele momento propiciava um esconderijo de sombras onde estavam. Dentro do barco, vi ele se abaixar e meter a mão por baixo do banco da popa e ao se levantar gritou para a margem chamando atenção do homem que imediatamente se dando conta de nossa presença levantou-se ainda com as calças arriadas no meio das pernas que ele se apressou em vesti-las desajeitada mente. Essa breve pausa foi o suficiente para que a mulher se desvencilhasse dele e saísse correndo, subindo a margem engatinhando tão rápido que instantes após já segurava o que restava das roupas e saiu correndo gritando por socorro. O homem ainda atônito virou-se e ensaiou a fuga.

Foi aí que ao me virar vi o objeto que ele procurou em algum esconderijo daquele barco que a cada instante me dava mais vontade de afastar-se dele: uma arma cujo metal negro, banhando em óleo, reluzia ao toque da luz amarela que vinha das lâmpadas de mercúrio dos postes da cidade. Não deu tempo de pensar nem de reagir. Olhei para a margem no momento exato que o estampido ecoou no ar.

No momento seguinte após o disparo, o homem pareceu ter sido por breves segundos , congelado com os braços abertos no ar. Logo depois se ajoelhou já com os braços estendidos e depois caiu para o lado já sem vida.

- Certeiro! E olha que nem precisei de mira telescópica igual a você fez ontem a noite. O detalhe de estarmos num barco em movimento não vou nem mencionar para não diminuir mais ainda sua perícia!

Novamente me veio uma sensação recentemente adquirida nos últimos dois dias: Meu estomago criou vida própria e vomitei o nada que não tinha dentro dele. Não conseguia acreditar que a cada minuto perto daquele ser, me traria tantas loucuras.

Sentando-se no barco e pegando os remos de minhas mãos, ele impulsionou o barco velozmente pela escuridão enquanto víamos que pessoas estavam chegando a margem atraídos pelos gritos da mulher em fuga e pelo disparo.

- Admita meu caro! Foi um belo tiro.
- Você é louco? Encoste esta merda de barco na margem, não passo mais um minuto ao seu lado!
- Mas por que? O que você acha q eu deveria fazer? assistir ao estupro como um voyeur desgraçado?
- Ele já havia parado quando você gritou! A mulher já tinha fugido! Não precisava mais nada!
- Hum-rum... E amanhã? Você estaria por perto quando ele resolvesse aliviar sua pressão hormonal de novo? Ou com apenas um grito, alguém teria a capacidade de reformular todas as idéias, conceitos, taras e desvios de alguém? Um grito e ele iria correndo para uma igreja se converter... Hum-rum...
- Mas é errado! Não se pode sair por ai matando as pessoas! Meus Deus! O que está acontecendo comigo?
- E se fosse uma irmã sua? Uma filha? Ou mesmo sua mãe?

Tive que me calar, sempre aleguei para os outros e até para mim mesmo que em certos casos, eu mataria alguém. Mas meu silencio não calou sua retórica:

- E você ainda não admitiu que foi um belo tiro.
- ...
- E olha que coincidência: você estava falando que sexo e morte não combinavam. Aliás: você falava sobre as maravilhas poéticas do sexo, sobre o prazer mútuo; não foi?

Neste momento, seu sorriso se transformou em uma imensa gargalhada ele largou os remos e acompanhava a risada com tapas que dava no joelhos. Mas após se refazer, rapidamente ele voltou aos remos e às palavras:

- Onde estava o prazer daquele estupro? No homem? Então era lícito por isso? Onde estava o romance?
- Você esta tentando me manipular novamente, desta vez não vai conseguir, desista.
- Não preciso. Você já concordou comigo desde o momento que me viu se levantar no barco. Seu problema é outro.
- E qual seria meu problema, já que você me conhece tão bem? Já que o grande dono de todas as verdades, reitor das vidas alheias e assassino de plantão nas horas vagas parece ser conhecedor de toda a verdade do universo?
- Bom, em primeiro lugar obrigado “reitor das vidas alheias”, soou muito interessante. Em segundo lugar, acho que você deveria rever sua ética pois não faz dois dias que você estava no meio do mato atirando em animais indefesos, alias não teve nenhum problema em esganar um deles com as próprias mãos.
- Há! Não me venha com essa! Era diferente!
- Em que? Na inteligência do animal? Na sua superioridade enquanto criação máxima do universo? Você nem precisava matar para comer! Foi por puro prazer! Aqueles animais não estavam atacando nem seus semelhantes nem seus diferentes meu caro. E quanto ao seu problema: no momento o maior deles chama-se RELUTANCIA!
- Relutância?
- Sim. Primeiro: reluta em admitir que faria o mesmo no caso do amante noturno lá atrás
- E ?
- Segundo e mais importante: Reluta em admitir que foi um belo tiro.

Mas uma vez, suas palavras faziam um sentido grotesco que não sabia de onde vinha. Mais uma vez me vi acuado pelos meus próprios pensamentos e pelas minhas próprias convicções. Só consegui emitir uma palavra:

- É...
- É o que?
- Eu faria o mesmo, mas seria apenas em uma situação especifica como aquela.
- E sobre o tiro? Foi ou não foi um belo tiro?
- Você precisa mesmo de tantos holofotes em cima de você?
- Foi ou não foi?
- Que diferença isso faz? Nem estava tão distante, e o barco nem estava com tanto movimento.
- Mas foi ou não foi? Admita!
- É...
- É o que?
- Foi um belo tiro porra! Satisfeito agora? Foi uma porra de um belo tiro!
- Obrigado, um dia você chega lá. Olhe! Chegamos!

E lá no meio do nada, surgia sua casa, totalmente isolada com os muros altos, na parte de trás que dava para o rio, um grande portão de aço marcava o inicio de uma rampa que mergulhava alguns metros dentro do rio. Ao lado desta rampa um pequeno píer flutuante onde ele amarrou o barco e saltou de dentro. Eu o acompanhei até o portão, onde ao invés dele ir até o pesado cadeado que cerrava a entrada, foi tateando o portão até achar uma pequena lamina solta que deslizava lateralmente, revelando um pequeno teclado escondido numa reentrância do portão. Ele digitou algo no teclado, e um barulho metálico destravou a lateral do portão, fazendo com que ele começasse a correr lateralmente.

- Um ladrão pode perder horas tentando abrir o cadeado e de nada adiantará. Ele não serve de nada!

Entrou dentro da casa e saiu empurrando um pesado carrinho metálico com rodas pesadas de ferro, o carrinho tinha o formato exato para caber o barco, era preso por um fino cabo de aço. Ao chegar na água o carrinho mergulhou abaixou da linha da superfície e facilmente ele pôs o barco em cima. Após prender o barco ao carrinho por meio de grossas tiras elásticas, ele entrou dentro da casa e acionou algo que parecia um motor elétrico para logo depois eu notar que o cabo esticava e aos poucos o barco foi sendo puxado para dentro.

Entramos na garagem e pude observar que ela atravessava todo o subsolo da casa e ia até a entrada da frente. Dentro dela havia duas motos, uma picape e um sedan preto, alem de bicicletas, do próprio barco e de uma enorme oficina com uma miríade de ferramentas extremamente organizadas. Não parecia ser a mesma casa da mesma pessoa que morava na parte de cima e onde tudo era desarrumado e virado de ponta cabeça. Ele pareceu ler meus pensamentos:

- Uma casa é só uma casa, mas a oficina de um homem é seu castelo!
- Não observei nada disso ontem a noite.
- Também! Desceu pálido que parecia um zumbi!
- Por que será não? – Perguntei retoricamente , deixando transparecer meu desconforto.

Dei um riso meio forçado e comecei a examinar aquele subsolo. Sempre fui aficionado por ferramentas, e aquilo era um paraíso para mim. Eram jogos de soquetes, furadeira de coluna, prensa hidráulica, chaves combinadas e de todos os tipos harmonicamente dispostas num painel em cima da bancada. Esmeril, morsas de vários tamanhos e agarras.

Tenho que admitir que senti uma enorme inveja daquele lugar. Enquanto eu babava em cima daqueles brinquedos, ele pediu licença e falou que voltava em alguns minutos.

Eu ainda não tinha chegado nem na metade das gavetas, painéis e caixas quando ele voltou de banho tomado e vestindo um conjunto de moletom branco com detalhes cor de rosa nas mangas e com um bordado enorme na frente:

“Quer perder peso? Pergunte-me como!”

Eu li aquilo, e comecei a esboçar um sorriso tímido, para depois abrir o riso que desaguou num a gargalhada que ecoou dentro da garagem.

- Qual é a graça ? – Perguntou-me meio constrangido
- Nada...Nadinha! Só estou imaginando qual o conselho que você daria para alguém perder peso: “Mate uma pessoa por dia e passe a note remando, desossando o cadáver como se fosse um porco, depois cave uma cova e atei fogo nele e depois reme mais um mundo de distancia que garanto que vai manter a sua forma!”
- Ainda não entendi a piada... – Sua sobrancelha direita arqueou-se enquanto o olho esquerdo fechou-se um pouco.
- Alem do que, que homem em sua sã consciência sairia vestido com uma aberração dessas? E ainda tem os detalhes rosinhas!

Desabei em gargalhadas e continuei:

- Afinal dentro de um louco reside uma alma feminina! Qual será sua próxima surpresa? Um salto alto para combinar com essa roupinha ridícula de veado?
- Esse conjunto pertencia ao meu pai, só uso ele em ocasiões muito especiais...
- Há ta... E você vai querer que eu acredite nisso? – Falei já cortando a risada, sentindo que literalmente tinha “falado merda”
- Gostaria que sim, pois você acaba de me deixar muito constrangido, você gostaria que eu pusesse outra roupa?
- Não cara! Mil desculpas... Puta que pariu! Não vou nem tentar consertar. Se mexer mais, fede mais. Desculpas. Na boa, não sabia nem que você tinha pai.
- E como eu teria sido gerado, numa chocadeira? – Responde ele de forma mais brusca, seu olho esquerdo fechou-se um pouco mais, e sua sobrancelha direita já estava tão arqueada que as rugas desenhavam uma meia lua em sua testa. Havia um brilho no seu olhar que começou a me assustar.
- NÃO! Não quis dizer isso! Ta vendo? Quanto mais se tenta desfazer uma merda, mas ela fede!
- É, concordo. E você acaba de cair no meu conceito.
- Pó cara... – gaguejei já imaginado que dali não sairia vivo. Pela primeira vez desde o inicio de todos os acontecimentos, me dei conta que um louco homicida não teria nenhum problema em ter mais um esqueleto em seu armário, e sentia que o próximo seria eu.
- Você não deveria ter feito isso, isso sim foi errado, isso sim foi um grande erro!
- Bom, já pedi desculpas, o que mais posso fazer?

Ele nada respondia, apenas me fitava com um olhar impenetrável e frio enquanto se movia em direção a uma das bancadas, imaginei que ele estava em busca de mais alguma arma e que aqueles eram meus últimos momentos de vida. Eu suava frio e minhas pernas tremiam feito vara verde enquanto ele em silencio abriu uma das gavetas e de lá tirou a última coisa que eu queria ver naquele momento: Um .38 taurus cano longo com alça de mira e cano reforçado e ventilado. Naquele momento ela parecia ter o triplo do tamanho. Tentei me afastar, mas atrás de mim estava a bancada de ferro, o toque frio do metal em minhas costas só fez piorar a angustia e o medo que eu sentia. Quando ele falou, sua voz era cadenciadamente lenta, como se quisesse que eu escutasse cada letra de cada palavra separadamente.

- Você sabe qual foi o seu erro?
- Sim cara... Putz... falei demais e feri seus sentimentos.
- Não, não foi isso...
- Há meu... Foi sem querer cara, na boa! Você tem entender que os últimos dois dias não tem sido fáceis para mim.. Pô cara! Dá um desconto! Para com isso meu! Você com essa arma não mão e com essa cara... Meu! Olha minhas mãos! Já estou suando frio meu! Para com isso! Pelamordedeus!
- Não foi esse seu único erro.
- Tem mais de um?
- Ô se tem!
- Então me fala caralho! Me deixa pelo menos tentar consertar a merda que eu fiz.
- Existem coisas nesta vida que não se consertam, que se você não tiver cuidado, depois não tem conserto

Ele apontou a arma para meu rosto e avançou lentamente até encostar ela na minha nuca, e sussurrou no meu ouvido:

- Seu segundo erro foi amarelar só porque eu peguei a porra da arma. Eu até duvido que você não esteja todo mijado. Nunca mais aja assim, não interessa onde você se meta, haja feito um homem! E-N-T-E-ND-E-U?
- S-s-s-siim – Gaguejei sem conseguir nem mais respirar, comecei a ver um filme de toda a minha vida passar pelos meus olhos.
- Seu segundo erro você já sabe qual foi, certo?
-...
- Eu te fiz uma pergunta porra!
- S-s-s-siim – Gaguejei novamente
- Se sabe, porque ainda está tremendo? Não entendeu o erro? Deixa pra lá...
- ...
- Seu primeiro erro – Continuou ele falando ao meu ouvido enquanto eu tentava imaginar qual seria a sensação de levar um tiro a queima-roupa na nuca, se iria demorar para morrer, se iria sentir a dor,etc – foi acreditar em mim...

Eu olhei para ele e o filho da puta começou a sorrir e se afastou ainda falando:

- Mas você é um pateta mesmo! Você acreditou que eu ia te matar ô mané?
- ... – Em silencio, eu não acreditava em mais aquela loucura. O cara tava tirando uma da minha cara!
- Esse moletom eu ganhei de uma namorada, e foi a primeira roupa que ví no armário.
- ... – Eu ainda estava em choque, não conseguia pronunciar nem uma palavra, aliás: acho que ainda estava sem respirar a alguns minutos.

Ele caiu na gargalhada até ficar sem ar, enquanto o sangue recomeçava a correr nas minhas veias. Meus dedos estavam roxos e dormentes de tanto que apertei a beirada da bancada, meus maxilares doíam de tanta força que eu fiz para esperar o tiro na minha cabeça e o filho da puta rindo aos borbotões da minha cara. Comecei a ver estrelas, minha adrenalina tinha ido a mil e agora cobrava seu imposto. As trevas queriam me engolir novamente e senti minha pressão arterial descer violentamente. Por um momento só enxerguei luzes brilhantes, e a voz dele parecia estar muito distante. Respirei fundo e tentei me recompor enquanto ele me convidava a conhecer o resto de sua oficina. Segui ele ainda com as pernas bambas e ele foi descobrindo um torno elétrico, uma fresa e mais outras maquinas que estavam cobertas com enormes lonas automotivas.

Eu não conseguia escutar suas palavras, pois sentia meu coração pulsar nas temporas e meus ouvidos zumbiam enquanto minha cabeça ainda girava. Assim que a voz voltou a habitar minha garganta eu implorei:

- Seu filho de uma grandessíssima puta! Preciso urgente de uma bebida...

Depois disso, não senti mais o chão sob os meus pés, tudo começou a girar e a ultima coisa que senti foi meu queixo chocando-se com o piso frio da oficina.

(Continua)

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