quinta-feira, 4 de junho de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 03

Ainda hoje sinto gosto de sangue na boca cada vez que me lembro do corpo deitado na margem. Parece que foi a poucos minutos que a luz amarela da lanterna iluminou o pequeno furo na nuca dele, libertando o filete rubro de vida que escorria pulsando e que a terra úmida não conseguia sorver. Fiquei estático observando o caminho tortuoso que o sangue desenhava em busca das águas do rio. Ao unir-se ás águas turvas ele se espalhou rapidamente, formando um pequeno lago de sangue dentro das águas do rio, preso à margem pela nascente escarlate que não parava de verter mais e mais sangue. Lembro-me do som dos peixes a pularem na tona, beliscando os pequenos coágulos que desciam rio abaixo.

O corpo exalava um cheiro horrível, mas não era um cheiro de morte ou coisa do algo. Simplesmente era falta de banho. Nos seus pés as unhas eram grotescas e sujas, seus calcanhares tinham crostas de sujeira como se nunca houvessem sido lavados. Seus braços tinham placas negras que se misturavam com a pela e os pelos. Seus cabelos eram colados uns aos outros por uma substancia que parecia breu, ou piche.

Sentei num tronco caído ao lado do corpo e tentava raciocinar, mas nada fazia sentido, e o crepitar das folhas sob os pés do meu estranho “amigo” examinando o resultado de meu tiro não me ajudava em nada. Nem mesmo tive reação quando ele foi em direção do barco e falou: “Espere aí, agora temos que arrumar essa bagunça que você fez.”. o barulho dos remos na água era monótono e ritmado. De repente, num respirar mais fundo, absorvi a situação: Eu havia matado alguém! Tentei repassar todos os fatos daquele dia, mas os detalhes não se encaixavam, eu havia visto ele atirar! E por que a vítima não se mexia antes nem depois? Por que eu ainda não havia ido embora correndo daquele pesadelo? Por que eu não fui embora assim que aquele louco puxou o gatilho?

As únicas palavras que saiam de minha boca e que foram Repetida muitas vezes durante toda aquela longa noite foram: “puta que pariu!!!”

Comecei a imaginar formas de me livrar daquela situação, mas nenhuma me afastaria daquele fato. Por mais que planejasse algo, sempre tinha a imagem do riso cínico dele. Imaginei que tudo foi uma manipulação dele, mas não fazia sentido: por que eu? Fui arrancado de meus pensamentos pelo barulho dos remos na água. Dessa vez ele trazia um lampião a gás no barco. A luz do lampião desenhando as formas e sombras do barco nas águas e aquele céu estupidamente estrelado formavam uma bela visão, não fosse o fato de que tinha acabado de atirar em alguém.

Veio com uma garrafa de um litro cachaça e falou: “É melhor você beber isso, o que temos pela frente não é nada agradável.”, falou isso num tom normal, como se o que fossemos fazer (fosse o que fosse) seria algo normal, natural até! Beijei o gargalo da garrafa e deixei descer vários grandes goles pela minha garganta. O fogo da cachaça incendiou meu esôfago e meu estomago criou vida, se contorcendo como um animal agonizante. A reação de meu organismo serviu para eu acordar um pouco, mas de repente senti que lucidez era o que eu menos queria naquela hora. Entornei a garrafa na boca e bebi quase um quarto dela. Acendi um cigarro e ao final dele, a bebida já tinha me relachado até onde eu queria.

“Acabou?” ele me perguntou, não respondi e caminhei em direção do barco. Na escuridão dentro dele, ainda dava para divisar os remos, um galão grande com algum líquido dentro, duas pás, duas picaretas e duas enxadas. Próximo da popa havia uma lona plástica dobrada e vários rolos de fita adesiva, daquela largas utilizadas para fechar caixas. Embaixo do banco havia uma caixa com ferramentas dentro.

Ele pegou a lona e se aproximou do corpo, pude observar que devia ter se passado bastante tempo, pois atrás da nuca dele o sangue já havia coagulado, perdendo o tom vivo e dos cantos para dentro começou a adquirir uma cor escura. Pegou pelos pés dele e o arrastou um metro de onde estava. Como se fosse uma informação que eu iria usar outras vezes, ele me falou: “antes de embrulhar, arraste-o um pouco para trás para poder por a lona por baixo. Assim você não suja a lona por fora e assim também não leva sangue para dentro do barco.”. Abriu a lona preta em duas dobras e colocou próximo ao corpo, como se fosse uma passarela. Rolou o corpo em direção à lona e foi aí que eu vi a trajetória de saída da bala: se por trás ela entrou deixando apenas um pequeno furo, sua saída destroçou o rosto, misturando olhos, nariz e dentes numa disformidade grotesca. Se não fosse o fato de eu estar meio anestesiado com a cachaça, teria sucumbido ali mesmo. Ele deu duas voltas com a lona, porém o terreno era íngreme e ele pediu para que eu ficasse na ponta da lona para ele dar as duas ultimas voltas. Fique acocorado e ao enrolar, o corpo adquiriu velocidade pela gravidade e acelerou em minha direção. “Cuidado! Segure isso!!!” antes mesmo dele terminar a frase, me vi agarrado com aquele embrulho gigante e mole. “Segure dessa jeito, vou adesivar nosso pacote antes que ele caia no rio. Aí sim teríamos problemas.”. Não agüentei e falei a primeira frase completa da noite: “Teríamos problemas? Como assim? E o que tínhamos agora era o que? Estou abraçado com um corpo de um estranho enrrolado em lona plástica! E fui eu quem atirou nele! Como você acha que isso pode piorar? Puta que pariu!”

- “Bem...”
Respondeu lentamente:
- “...Caso não tenhamos o cuidado e a astúcia necessária, isso pode se tornar um assassinato premeditado...”
- “Como assim SE TORNAR? O que você acha que tudo isso é?”
- “Um segredo entre mim e você. Vai depender de sua escolha. Afinal você pode procurar a polícia e tentar explicar o que houve, ou seguirmos nossas vidas como se nada houvesse acontecido. Pois afinal, não aconteceu nada, não é mesmo?”
- “... É.. Não aconteceu nada...” e completei baixinho, quase sussurrando: “...Puta que pariu...”

Não sei de onde saíram essas palavras, mas na hora achei que pelo menos eu estaria ganhando tempo. Não sabia para quê. Enquanto eu segurava aquele embrulho horrível, ele começos a dobrar as pontas e fechar com a fita adesiva, começando pela cabeça e indo em direção aos pés, gastando quase um rolo só para fechar 30 ou 40 centímetros. “Essa é uma das melhores invenções do homem!” falou. “Se você souber usar, você consegue plastificar praticamente qualquer coisa! Observe como a cada volta, eu venho cobrindo metade da fita da volta anterior. Desta forma, qualquer coisa que você fechar com essa fita, fica praticamente hermeticamente fechada.”
- “Parece que não é a primeira vez que você utiliza esse método.” Arrisquei
- “Realmente, diria que já utilizei esse método em várias situações, objetos e oportunidades. Mas e você? Será que esta vai ser a última vez que você utiliza esse método para essa situação específica?”
- “Com toda certeza!”
- “Veremos...”
A ultima frase caiu feito um tijolo em minha mente, a fita já começava a alcançar a cintura e tivemos que mudar de posição. Não sabia o que fazer e colocamos ele de ponta cabeça. Foi quando observei que a parte superior do corpo estáva rígida, enquanto a parte inferior tombava para os lados.
- “Está vendo? Essa fita é uma maravilha! Em breve o nosso amigo estará firme e lacrado”

Terminamos o pacote, ele pegou a enxada e me entregou, apontando para o sangue no chão, e com o polegar direito apontou por cima do ombro, em direção ao rio. Fui arrastando aquela coisa que já começava a feder e coagular numa pasta viscosa. Puxei tudo para dentro do rio, onde os peixes faziam festa, depois com a lanterna verifiquei se não havia esquecido nada e me sentei no barco a procura da garrafa de cachaça. Só notei que ele já havia trazido o corpo para dentro do barco quando notei que estava sentado nele.

“Puta que pariu!”, foi o que pude exclamar. Recolhemos o restante das coisas e descemos o rio sem precisar acionar os remos. A lanterna ia na proa, iluminando todo o caminho à frente enquanto desenhava nossas sombras a partir da popa do barco. Não sou muito bom em medir distancias, mas acho que saímos dos limites da cidade, pois as luzes que já eram longes da casa dele, agora sumiram no horizonte. Na minha frente uma nova abóbada de luz no céu indicava que estávamos já próximo da cidade vizinha.

Aproveitando uma curva do rio, ele imprimiu força nos remos e facilmente alcançamos a margem. Puxamos o barco para terra e ele saiu procurando algo pelo chão, e eu junto sem saber o que procurávamos. “Aqui!” exclamou. “Por favor, vá pegar as ferramentas”, quando voltei com a caixa que estava debaixo do banco, ele me perguntou se eu iria cavar com uma chave de fenda, uma faca de cozinha ou com a serra. Senti-me ridículo e fui buscar as pás, enxadas e picaretas.

Começamos a cavar a terra fofa e úmida, não era difícil e em pouco tempo tínhamos uma enorme e profunda cova. A eletricidade começou a percorrer o meu corpo e juntos fomos buscar o falecido para providenciar-lhe o sepultamento. Pensei que íamos jogar ele dentro e enterrar, porém ele nos fez colocar o corpo de bruços na beirada da cova e pediu que eu trouxesse a caixa de ferramentas. Com a faca, começou a abrir o embrulho, de dentro saiu um cheiro amargo e nas ultimas voltas da lona, ela grudava no sangue do corpo e fazia um barulho de gosma. Quando terminamos , ele foi ao barco e trouxe várias estopas de limpeza, daquelas usadas em oficinas. Senti minha pele se arrepiar antevendo os seus planos. Abriu o galão, e de dentro a gasolina era jogada nas estopas dentro de uma bacia plástica. Além disso, ele começou a encher varias sacolinhas de plástico com gasolina e fechando-as com um nó. Ele foi até a caixa de ferramenta e após calçar um par de luvas de látex que iam quase até o ombro, pegou uma enorme faca de açougueiro. Senti meus olhos esbugalharem quando ele se virou para mim e falou:

- “Preste atenção! Não vou fazer isso sozinho, e não vou ficar repetindo: Já cortou carne para churrasco? Então, é igual! Procure as juntas e corte o máximo possível de tecido, ao final use a machadinha para soltar as cartilagens.”
- “Você deve estar brincando, certo?”
- “Lógico que sim!”

Falou isso e com um golpe vertical, rasgou a perna direita do jeans pelo lado de fora, depois foi a vez da perna esquerda. Com um único puxão, arrancou as calças e jogou dentro da bacia com a gasolina.

- “Meus Deus! A quanto tempo esse trapo não tomava um banho? Jesus!”

O corpo fedia pela falta de banho crônica, mas não foi isso que me virou o estomago e me fez vomitar o resto de nada que havia lá dentro. Foi a exposição dos tecidos da parte de trás dos joelhos, arrebentando-se em tendões, carne e músculos quando ele lentamente começou a arrancar as pernas do defunto! Vomitei até não ter mais ar para respirar, e quando levantei a cabeça, ele já havia arrancado as duas pernas e os dois braços, o corpo era uma imagem terrível no chão sobre o plástico preto. Ele veio em minha direção e falou:

- “Eu já falei que não ia fazer isso sozinho. Que tal se você se recompor e ajudar a arrumar a bagunça que você armou? Ou já se decidiu em procurar a polícia e explicar tudo?”
- “Eu não vou conseguir... não dá!!!”
- “Há vai sim! E é melhor agir rápido, pois daqui a algumas horas o dia vai nascer, e apesar desta região ser bem remota, sempre pode haver algum caçador, lavrador ou outro curioso passando por aqui. Isso pode trazer mais problemas para nós dois. Isso ainda não é um assassinato, certo?”
- “Certo, ainda não é.”

Tentei fazer o trabalho o mais rápido possível, mas era difícil fazer isso sem virar o corpo para cima, e eu não queria olhar a face dele destroçada novamente. Por mais que eu tentasse não enjoar, o cheiro da sujeira, aliado aos pedaços dele que íamos pouco a pouco amontoando ia me vencendo a cada passo.

Terminamos o processo com a degola dele, depois começamos a jogar as estopas e as roupas dele encharcadas de gasolina dentro do buraco, a gasolina formou um gás dentro da cova e quando ele jogou um fósforo aceso, uma explosão surda iluminou a madrugada. Tivemos que nos afastar uns dois metros da cova para poder suportar o calor, e começamos a jogar as partes decepadas dentro da cova acesa. O cheiro da carne humana queimando é terrível! Parece queimar o nariz, faz com que os pulmões percam a capacidade e os olhos começam a arder. Cada vez que jogávamos um pedaço, ele jogava mais duas ou três sacolinhas com gasolina, que explodiam lá dentro e as vezes jogavam pequenos pedaços de tecido humano lá de dentro, que rapidamente eram jogados de volta. Quando o dia começou a amanhecer, estávamos jogando o ultimo pedaço, ele pegou sua cabeça pelos cabelos, encharcou ela com gasolina e a jogou no nosso inferno particular. O cheiro dos cabelos queimando foi insuportável. Só aí que percebi que sob a luz do dia que começava a chegar, dava para ver a enorme coluna de fumaça negra que se perdia no céu.

- “E agora? O que fazemos?” perguntei.
- “Agora é rasgar a lona em pedaços pequenos e jogar lá dentro, não se esqueça das luvas. Aliás, vai lavando as ferramentas que ainda temos um longo caminho rio abaixo”

Enquanto fui efetuar minha tarefa, ele se encarregou de incinerar os últimos objetos e saiu mato adentro e voltou com vários galhos e pequenos troncos de madeira. Várias vezes ele fez isso e ia jogando dentro da cova, em minutos a fumaça passou de negra a marrom até que ficou completamente branca. Tempos depois eu descobri que a única forma de se livrar quase que totalmente de um corpo é queimar em partes e depois colocar muita lenha sobre os restos e queimar tudo, pois assim os ossos se esfarelam restando pouco ou quase nada do que foi queimado.

Esperamos até o sol ficar alto e as ultimas brasas começarem a dar sinal de morte. Enterramos tudo , lavei novamente as enxadas usadas e entramos no barco para continuarmos a descida. Acendi um cigarro e perguntei:

- “O que aconteceu quando você atirou nele? Sei que você errou propositalmente, mas porque ele não se mexeu com o barulho do tiro?”
- “Ele estava dormindo.”
- “ fale sério!”
- “Estou falando, ele estava dormindo desde antes de você chegar. Faziam dias que ele vinha se esgueirando pela minha casa e furtando pequenos objetos. Achando pouco, ele ainda sempre deixava uma lembrança em algum lugar do jardim, ele sempre usava meu jardim de banheiro público.”
- “Então você o conhecia?”
- “Não exatamente, apenas era vitima de seus abusos a mais de 15 dias. Hoje antes de você chegar, eu o encontrei bêbado no meu jardim e enchi uma toalha com clorofórmio e afundei a cara dele dentro, ele nem se mexeu, acredita? Então, depois entrei em casa e peguei um anestésico que estava em casa desde que meu cachorro foi operado aqui em casa e apliquei nele. Depois foi só arrastar ele até o barco, atravessar o rio e deixar ele na posição certa para você vê-lo. Tive o cuidado de colocar ele embaixo da árvore. Desculpe-me, mas achei que se fosse contra o sol e sem a árvore talvez você não conseguisse acertar.”
- “Você é doente!” esbravejei, “Eu não acredito que tudo isso esteja acontecendo, e não acredito mais ainda no fato de eu ainda não ter sumido daqui e nunca mais lhe ver! Meus Deus! Preciso por um oceano entre mim e você!”
- “Tudo isso por que eu duvidei de sua pontaria? Tsc...tsc...tsc..”

E caiu na gargalhada. Eu me tranquei num mutismo medroso, assombrado por visões e cheiros e sons. Só foi interrompido quando ele foi pegando cada ferramenta e foi jogando uma a uma dentro do rio, com uma distancia média de uns 5 metros entre cada uma. Quando o barco ficou vazio, senti que o tempo começava a correr e que de alguma forma eu estava me afastando de tudo o que tinha acontecido nas ultimas horas. Antes de entrar em mais uma curva do rio, olhei para trás e vi que nem mesmo a fumaça era mais avistada. Tudo estava ficando para trás.

Chegamos na próxima cidade e atracamos sob uma árvore, por trás dela uma pequena vila de pescadores. Saímos dois extremos: ele no máximo da naturalidade, e eu achando que todo mundo já sabia do que tinha acontecido. Me espantei quando ele sentou na mesa do boteco e pediu uma cerveja e me chamou para sentar. Lembrei que estava com sede.

Sentei, e o copo foi enchido com aquele liquido dourado, enchendo quase até o topo e deixando um pequeno colarinho, ergui o copo contra o sol, encostei nos lábios e a cerveja parecia que me liberava de tudo e de todos. A cerveja gelada desceu minha garganta lavando até a minha alma. Cada gole era sorvido como se fosse a ultima oportunidade que teria na minha vida para tomar uma cerveja. Não agüentando mais meu próprio silencio, exclamei!

“Puta que pariu!!!”

Tomamos 14 garrafas.

(Continua)

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