sexta-feira, 7 de março de 2014

Apenas Uma fantasia?

Apenas Uma fantasia?

Um sol a pino, causticando as ruas e ressecando minha pele ardida. Uma esquina ricamente decorada com as tintas das cores da alegria; e lá dentro os instrumentos renasciam nas mãos do contramestre a esticar suas cordas e afinar suas peles tão finas e tão poderosas.

Ao longe um perfume canábico que me trazia as lembranças de terras de outrora, de tempos idos e jamais recuperados. A dolorosa ladeira me remetia aos altos e baixos Olindenses, enquanto que o bafo quente do rio logo abaixo mergulhava minha lembrança no calor molhado que foge dos mangues recifences e se espalha pelas ruas de minha capital.


Mas eis a dicotomia da realidade e da lembrança: não estava eu em terras Pernambucanas, e sim no “sul-maravilha” que a tantos e tantos anos norteou a descida ao sul de tantas e tantas cabeças de minha gente, de meu povo.

Os preparativos finais com as cores de Baco e o sabor de Dionísio permearam minha pele, delicadamente violentaram meus tímpanos e tomaram de assalto minhas narinas, fazendo-me cativo de um paradoxo de espaço/tempo onde aquela terra aos poucos se tornava uma outra nação.

Aos poucos, vinha chegando mais gente, etnias dispares e classificações sociais diferentes. Eram batuqueiros e batuqueiras, pessoas imbuídas na sagrada missão musical do lúdico e do belo, filhos dos anjos que antes de decaírem deram aos homens as artes e a capacidade de com elas interagirem. O profano cada vez mais se miscigenava com o sacro e dessa união quase que sexual, aquela esquina paria, dando à luz filhos de um tempo chamado musica, de um lugar chamado arte; de um sangue chamado fraternidade.

De repente, uma caixa solitária repica uma cadencia ritmada e facilmente reconhecida aos meus ouvidos, meu corpo se estremece antegozando o que viria em seguida: madeira, pele e fibras entoam um trovejar ritmado que rugia dessa tríade de elementos. As alfaias respondiam à caixa e logo em seguida vieram as vozes dos xequerês, embalados nos braços das moças como se fossem crianças a serem embaladas num doce e mítico mantra sem fim. Ao longe, o metálico som do gonguê marcava agudamente o que o grave troar das peles compassava ao seu modo.

Estandartes eram desfraldados, para que aquele grupo pudesse exibir suas cores, tradições e crenças. A rua tremia ao peso do maracatu, as pessoas assistiam meio que incrédulas àquela manifestação popular, àquela arte que insultava aos eruditos e causava espécie aos donos das cátedras que desde sempre vilipendia a cultura popular como se essa carecesse de partituras ou de outros limites e rédeas que jamais domarão o que o povo miscigenou.

Algo acontecia! Algo de místico, de paranormal; de inexplicável. O peso de meus 44 anos começava a se esvair, o cansaço de uma lua de mel com minha jovem ninfa de 24 anos parecia longe; a dor dos pinos em meu pé foi suplantada por um bater de cascos no chão. Eu me despedia de mim mesmo e ao poucos era tomado por um animal gutural, por uma entidade ancestral que meu cérebro reptiliano começa a purgar em doses e golfadas que seguiam a cadencia do batuque como se fossem jorros de um orgasmo a muito represado.

Abracei o anfitrião do folguedo, pedindo-lhe bênçãos e agradecendo pela honra de empunhar o símbolo daquela reunião, daquele rito; de tudo o que seria e que realmente foi. Vesti aquela fantasia e de repente, de humano me transmutei em uma entidade. Dentro daqueles panos e arames eu não era mais eu, era mais! Era uma ave que embora não lhe foi permitido o vôo, me fez voar por sobre pessoas, conceitos, ruas e mentes, sendo levado pela cadencia que me fazia pleno, que me alçava e me fazia sentir-se parte de algo maior, de algo que só aos infantis, iniciados e artísticos é permitido conhecer!

O suor me escorria da cada poro, as pernas não mais me obedeciam, pois seu verdadeiro mestre não era mais minha mente, e sim o som que me hipnotizava em um transe ancestral. Cada vez que o cansaço me alcançava eu me aproximava dos músicos e eles gratuitamente me renovavam da psicodélica droga do baque solto, do baque virado, do baque que metamorfoseava a mente e jogava a realidade em vias paralelas à tudo que podemos reconhecer.

Toda e qualquer ajuda a mim oferecida, eu intimamente tomava como insulto! Pois era minha a honra de exibir aquele símbolo às crianças que tanto amam e crêem naquela ave pernalta. Era meu o direito de mitigar cada músculo meu como se fosse uma paga prometida; meu era o momento, e apesar de escondido por sobre a corpórea mascara, ostentava respeitosamente o seu encaminhar até sua apoteose final.

Há as crianças! Como me renovavam o fôlego ao chamar o símbolo, como faziam com que tudo valesse a pena! Mesmo aquelas crescidas, que portando décadas de historia ainda se emocionavam com a imagem de um ser quimérico que só a imaginação seria capaz de produzir.

A chuva que caia refrescou o calor, mas não amainou os ânimos! A bendita água a tanto desejada e esperada foi balsâmica e divinamente refrescante, porem em nada diminuiu o cortejo que seguiu impávido e imponente, sendo ao mesmo tempo humilde em sua resignação de seguir em frente sob sol ou sob chuva, mas sempre marchando e desfilando por sobre as pedras frias da cidade de aço, concreto e vidro.

Mas a universal lei da renovação se fez presente, e tudo que se inicia, tem seu momento de término. E a Ema chegou em seu palco, e o povo que a seguia se avolumou e numa amalgama fértil de etnias, crenças, castas e origens, se fazendo uma; se uniu ao todo que a tudo gerou e introjetou-se de folia, de festa e alegria! E a massa coesa e feliz chegou ao seu destino sem brigas, sem iras, fúrias ou raivas (in)contidas. E essa mesma mistura confraternizou em paz, comungou naquela catedral aberta, naquela nave que a todos abrigava e a nenhum proibia.

Então me despi do símbolo e novamente me tornei mortal, mais uma vez voltei-me a minha parca condição de apenas mais um transeunte no meio da multidão. Agora o transe começa a se esvair e me sentia meio órfão, meio morto, meio homem cuja metade animal fora despida e agora jazia num canto do palco a espera de que alguém a fizesse reviver e assumisse o posto que egoisticamente neguei a todos durante toda a levada.

O som era por mim absorvido de forma esdrúxula, as cores tomavam formas lisérgicas aos meus olhos que giravam como deviches em festa. O chão sob meus pés parecia gelatinoso e meus sentidos béticos e tridimensionais eclodiam em novas formas de percepção. Era o transe que aos poucos me deixava novamente são, mesmo eu querendo que toda a sanidade do universo fosse embora e que meu deleite e minha doce ilusão durasse eternamente.

E mesmo desejando ficar até o ultimo sussurro das vozes que embalavam a multidão, o peso da idade, do calor, e das dores que tomavam meu corpo me forçou a me despedir do meu caríssimo anfitrião e me recolhesse aos braços de minha doce ninfa que a tudo, ao longe assistiu. Era o fim de mais um missão de fé, fé na alegria e no amor fraternal, fé na condição humana de ser feliz levando alegria e felicidade por onde quer que se vá. Era o fim de mais um ciclo, era a coroação de mais um ano do bloco da ema!

Marcelo Silva

Fim de noite do dia 05 de março de 2014
Resgatando o que a sanidade permitiu-me lembrar de tantas e tantas sensações daquele carrossel de emoções que ontem me tomou de assalto.

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