sexta-feira, 17 de julho de 2009

...Em busca da musa... (01)

De todas as flores que brotam de meu cerne poético, apenas algumas são colhidas, deixando a grande maioria a morrer pensa nos galhos. De todas as flores não colhidas, não brotarão brotos plenos de crescimento.

Eis a roseira! Ainda vive! Mas eis também a frieza da jardinagem que a ela releva o nada!

E a roseira prenhe de amor vai morrendo, findando-se pela falta de solo fértil onde o que brota de seu interior possa encontrar ressonância e inflar-se do adubo-amor.

Eis a roseira que já não mais brota...

Eis o poeta que já não mais palpita...

Eis... eu...

Sinto que o dia-a-dia atual me deixa cada vez mais solapado, tomado e relegado a planos mais terrenos, menos criativos, mais materiais, menos românticos.

As pessoas são más! Mesmo achando que estão fazendo o bem.

Pois necessita-se de um mínimo de aurora.

Precisa-se de uma musa que ao menos represente algo de belo, puro e (in)tangível

É necessária uma aurora!

Para mim, bastaria a réstia da aurora por baixo dos pesados portões de minha prisão.

Se ao menos eu pudesse enxergar a luz que me foi tirada, se ao menos eu pudesse tocar a brisa que não chega nas masmorras que hoje vivo; se ao menos pudesse escutar o canto dos pássaros sem as grades para filtrá-lo. Já seria muito.

Só queria um amor, e na busca, busquei longe; e no encontro, vi-me tolhido.

Faz-se imediata a presença de um mínimo de reconhecimento, um mínimo de atenção.

Olho-me no espelho e a dor maior é ver que não sou 100% imperfeito, que se fuçar bastante, tem algo de bom por baixo de toda a lama.

Se minha musa escolhida não me completa, que eu tenha outra! (nem que seja imaginária)

Assim criarei a escultura da mulher buscada, a tela do amor perdido; a poesia da vida sonhada.

Assim, serei feliz dentro da caverna onde as sombras substituirão a realidade, serei feliz por trás dos véus que me protegerão das palavras frias e da opacidade do amor circunstancial. Assim talvez no sonho da mulher amada eu encontre a paz que a muito perdi.

Marcelo Silva
17/07/2009
Atordoado, porém atento!
...Hoje e sempre...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O MAL - Um conto pseudo-fictício de uma mente (in)sana - Parte 05

Acordei com o cheiro forte de amoníaco que exalava de um lenço que ele pos próximo ao meu rosto para me acordar. Uma dor lacinante corroia pelo meu queixo.

O riso havia sumido da cara dele, visivelmente preocupado. Perguntou se eu estava bem e me apoiou me levando até o lavabulo e esperou que eu lavasse meu rosto para depois me passar uma caixa de primeiros socorros. Apesar de pequeno, o corte não parava de sangrar nem de latejar. Comprimi ele com força com uma gaze e me sentei.

- eu falei que precisava de algo para beber.
- ok, vamos até lá em cima.

Subimos as escadas e ele entrou no quarto e pediu para que eu o seguisse, abriu a porta do guarda-roupa e separou uma muda de roupa e me apontou o banheiro. Tomei um longo e relaxante banho morno, quase fervendo, e mudei de roupa. Sai do quarto e quando entrei na sala parecia que era outro lugar. Ou eu havia me demorado horas no banho, ou ele tinha uma empregada escondida dentro do armário, pois a sala estava quase organizada e quase limpa. Notando meu espanto, ele falou:


- como você resolveu demorar muito no banho, transferi parte da bagunça para a cozinha.... agora ela está impenetrável!

Em cima da mesa, duas cervejas geladas, o gelo se formava por fora das garrafas levantando uma leve fumaça gélida. Já era madrugada da segunda-feira e o banho havia começado a fazer minha consciência e sanidade voltarem. Sentei e rapidamente tomei a cerveja, logo avisando que iria embora imediatamente. Ele deu de ombros, entrou no quarto e trouxe uma sacola com minhas roupas sujas dentro e me entregou. Perguntou quando eu voltaria e respondi que em breve, que este final de semana tinha sido muito intenso.

Naquele momento eu poderia jurar que havia um medo da solidão em suas perguntas. Parecia que éramos amigos a décadas e que agora eu iria embora para nunca mais voltar. E era isso que eu tinha em mente!

Peguei minhas coisas e fui saindo, ele me acompanhou até a porta e ao chegar no grande portão da frente, pos o braço por sobre meus ombros e falou:

Tivemos um grande final de semana hein?
- ô!!!
- espero que tenha gostado, realmente.

O mais estranho, foi que tinha sinceridade plena nas palavras dele.

- sim, foi bom. Não diria que gostei, mas foi no mínimo excitante.

O mais assustador, foi que tinha sinceridade plena nas minhas palavras também.

Entrei no meu carro, pus o cinto e respirei fundo. Quando o portão se abriu, parecia que todo o universo se abria em liberdade só para mim.

Acelerei vagarosamente, acenando pela janela e dando uma pequena buzinada. Na madrugada alta, os faróis do velho ford del rey rasgavam a escuridão montando vultos e sombras nas arvores da beira da estrada. Os pios de uma coruja solitária quebraram o ruído do motor e resolvi ligar o rádio. Os auto falantes começaram a despejar musicas antigas românticas, me fazendo relaxar. Meus dedos estavam doendo de tanto apertar o volante, só que eu não havia notado essa situação. Após vários minutos, venci a distancia entre a casa dele e a rodovia. No asfalto acelerei mais ainda até entrar na cidade. Pensei em parar em um bar , mas eu precisava urgentemente chegar em casa.

Na chegada, eu estava tão exausto que quase me esqueci de fechar o portão da garagem, cambaleei para a sala e sem ligar a luz, desabei no sofá já com o controle remoto da TV na mão. A TV pintou a sala com suas luzes e mudando de canal procurei algo para me distrair. Parei no canal de desenhos animados onde passava “jonnhy bravo” e deitei a cabeça na almofada que havia ganhado de minha irmã, bordada com a frase “...Para um grande homem...”. Quando na penumbra da TV li a frase, dei um riso forçado e nervoso, seguido de um resmungo a atirei a almofada longe, quase acertando o abajur de vime em cima da estante no canto da sala.

Me aninhei no sofá e imediatamente dormi.

Desde muito jovem eu tinha sonhos onde eu sabia que estava sonhando, mas mesmo assim não conseguia parar de seguir o script onírico. Mas mesmo em alguns pesadelos eu sabia que não era real. Alem disso, sempre fui muito cético, e sempre achei que os sonhos não tinham nada de especial. No máximo é o nosso subconsciente querendo nos pregar peças, montando ilusões a partir do que já temos dentro de nossa mente. Mas mesmo assim sempre era bom quando eu tinha esses sonhos “conscientes”

Desta vez eu estava ao lado de meu falecido pai, e caminhávamos pela avenida à noite. As luzes amarelas de vapor de mercúrio desenhavam nossas sombras pelo chão e falávamos sobre trabalho, mulheres, economia e tantos outros assuntos que pareciam não ter fim. Eu sabia que era um sonho, mas era maravilhoso sentir o perfume de sabonete phebo que exalava daquela figura mágica. Suas feições sérias porem simpática me fazia sorrir. As ruas estavam desertas e comentei com ele sobre isso.

- muito quieta esta noite não papai?
- é, só mais uma noite
- até amanhecer! – retruquei brincando.
- meu filho: se conselho fosse bom, não se dava. Se vendia. E CARO! Deus escreve certo por linhas tortas, e eu sei que não devo duvidar da sabedoria divina, mas mesmo assim não acho que a noite esteja para brincadeiras.
- mas o que houve?
- quando você acordar amanhã, talvez você não se lembre mais dessa nossa caminhada, mas espero que se lembre que aqui se faz, aqui se paga.

Eu sabia que era um sonho, que aquilo era apenas minha consciência fazendo sua parte em me torturar, mas a ilusão era ótima, e o cheiro de meu pai, a cor morena de sua pele e o som calmo e tranqüilo de sua voz eram caros demais para que eu quebrasse aquela imagem. Fiz de conta que realmente era ele e continuei falando de outras coisas, querendo mudar de assunto. Mas minha mente ainda se lembrava muito bem de meu pai e ele falou:

- não quer mais falar sobre isso?
- não sei... Gostaria que isso aqui fosse a realidade e que tudo que passei tivesse sido a ilusão. Mas acho que vou ter que conviver com isso pelo resto de minha vida.
- é meu filho... Pelo menos você ainda tem uma vida, ao contrario daquele homem que você matou.
- não tive escolha, fui envolvido numa situação que nem em duzentos anos eu poderia imaginar.
- sempre temos escolhas. Se não quisesse, não teria feito nada.

Tentei fugir, retrucando e atacando ele

- o senhor também teve oportunidades de escolher, sua vida poderia ter sido muito mais fácil
- eu escolhi o melhor, e se meu fim foi doloroso, eu pelo menos pude dormir todos os dias com a cabeça tranqüila. Mesmo sozinho e aleijado, meus últimos dias foram iguais a todos os dias de minha vida: tendo a certeza de ter feito o certo.
- ...
- nunca faltei um dia de trabalho, nunca roubei ninguém, nunca abandonei minha família, nunca deixei faltar nada aos meus filhos e nunca fiquei devendo nada a ninguém, nem favor!

Isso era uma verdade absoluta, ele todos os dias acordava antes de todo mundo e ia para sua oficina, onde passava o dia cumprindo seus deveres e sendo um exemplo de homem. Só deixou de trabalhar depois que a diabetes lhe arrancou uma perna, e dois ou três anos depois lhe levou a segunda perna. Mas mesmo reduzido a “meio-homem” como ele gostava de brincar com a sua própria situação, sempre manteve a aura de simplicidade e felicidade. Sempre resignado com o que a vida podia lhe dar ou tirar. lembro quando de sua segunda amputação quando o medico lhe informou que iria amputar sua outra perna e ele responde:

- doutor, o medico aqui é o senhor. Se o senhor ta falando que tem que tirar, fazer o que? Não vou mais jogar futebol mesmo.

Ainda hoje, quando olho suas fotos eu sinto toda a grandeza daquele homem que eu havia recriado em minha mente como a mais dolorosa forma de auto-punição. Continuamos a caminhar na avenida deserta e eu olhava para as suas pernas intactas e pus o braço por cima dele e continuamos a caminhar abraçados. Ele me perguntava sobre a cidade, sobre os velhos amigos (quase todos já falecidos) e relembrávamos nossas estórias. Sempre fomos mais amigos que pai e filho. Saímos para beber, pescar, viajar e conversar.

Com um enorme animal aninhado na garganta, que rasgava minha goela com tenazes de caranguejo, eu com a voz embargada perguntei:

- será que eu não poderia ficar o resto da eternidade aqui? Conversando com o senhor, caminhando e relembrando todos os nossos momentos?
- não. Infelizmente para você, sua caminhada ainda será longa e sofrida. Mas você sempre terá escolhas melhores. Você pode sempre escolher o melhor caminho.
- mas o caminho que escolhi, agora me trará um eterno arrependimento. Acho que nunca mais terei paz. E não tenho a mínima intenção nem coragem de assumir tudo o que fiz. Acho que é melhor que eu sofra sozinho sem ter que fazer mais ninguém sofrer.
- é mais fácil se apoiar nos outros. O que você não quer é ter que enfrentar a justiça pelo que fez.
- também...
- mas existe uma outra justiça meu filho. Dessa ninguém foge.
- mas podemos tentar, né?
- sim, mas não vai conseguir.

O dia começava a clarear e do outro lado da rua, um orelhão não parava de tocar.

- meu filho, Minha condução está chegando. Já é tarde e tenho que ir.
- quando nos veremos de novo?

Ele me olhou com o sorriso franco de sempre, acariciou meus cabelos e falou:

- não sei, sou apenas um sonho que você criou.

O telefone aumentara muito de volume e quando olhei para o outro lado da rua, começaram a surgir dezenas de pessoas. Todas sem rostos e se dirigindo para o nosso lado da rua. Um pavor imenso tomou conta de mim e instintivamente eu procurei a mão de meu pai para me proteger, mas só havia um vazio no lugar onde ele estava. Tentei correr, mas meus passos eram lentos e pesados. Eu tentava me concentrar que tudo aquilo era um sonho mas o medo aumentava a cada inspiração que eu dava. O som do telefone era ensurdecedor. As pessoas que se aproximavam vinham caminha do tranqüilamente, por não terem rostos, não aparentavam nenhuma intenção, mas no fundo eu sabia que queria me pegar. Quanto mais eu tentava correr mais ficava lento e com dificuldade de respirar. Das esquinas à frente surgiam mais deles, nas janelas eles pareciam brotar e das portas que se abriam saiam mais e mais deles. Quando me vi completamente cercados por eles, gritei e o grito acompanhou minha volta à realidade.

Acordei gritando, chorando e suando como um pai-de-santo, o telefone da mesa não parava de tocar. Não consegui atender. Apenas corri para o banheiro e liguei o chuveiro. A água morna parecia arrancar minha pele enquanto o telefone não parava de berrar na sala. Mesmo demorando muito no banho, pois tive que tratar do corte do queixo que ainda incomodava muito, quando saí o telefone ainda tocava. Tirei ele da tomada e fui para a cozinha tomar água, minha garganta estava seca e eu não conseguia respirar fundo sem ter uma enorme vontade de chorar.

Voltei para a sala e lá na parede estava o retrato de meu pai, tirei ele da parede e fiquei vários minutos fitando aquela imagem. Sentado no sofá, notei que a TV ainda estava ligada e mudei de canal para ouvir as noticias. Parecia ter sido combinado, mas a reportagem que estava passando era sobre a misteriosa estória da noite anterior, onde dois homens em um barco haviam impedido um estupro e a policia estava atrás deles com hipóteses de que eles eram comparsas, rivais em busca de vingança ou outras teses que enchiam o gosto dos noticiários ávidos por uma boa estória. Demorou muito tempo para que um repórter levantasse a possibilidade de ter sido apenas alguém que vendo a cena pudesse ter agido para salvar a mulher. O delegado prontamente respondeu:

- é uma hipótese, mas nos dias de hoje ninguém mias se envolve com essas coisas. Alem do mais, o que fazia dois cidadãos de bem naquela hora e naquele bairro andando de barco? E ainda por cima armados?

Exclamei um sonoro “VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!” e desliguei a TV. Eu estava num misto de medo e de indignação. Haviam testemunhas! Sabiam que estávamos por ali. E se tivessem nos vistos? E se nos seguiram? E por que ninguém aceitava a hipótese VERDADEIRA que aquilo foi para salvar a mulher?

Troquei de roupa e de carro fui para o trabalho. Na época eu havia recuperado a velha oficina automotiva de meu pai e a havia transformado em uma oficina de motocicletas. Estacionei o carro embaixo da sombra arvore da esquina e fui me aproximando. Ao chegar mais perto, senti minhas pernas desfalecerem e um calor percorrer meu corpo saindo dos calcanhares até a nuca. Fiquei completamente arrepiado quando vi uma viatura da policia na frente da oficina conversando com o rapaz que me ajudava. Pensei em dar meia volta e sair, mas ele me apontou e falou bem alto:

- olha ele ali!

- filho da puta! – pensei. Parei no meio da calçada sem ter mais o que pensar. Os dois policiais vieram em minha direção e eu não deixava de observar suas armas e suas algemas penduradas em seus cintos. Confirmaram meu nome e pediram para acompanhá-los até a delegacia. Perguntei sobre o que se tratava, mas apenas falaram que no distrito policial seria tudo explicado. Pedi para ir ate a oficina pegar meus documentos originais e consentiram, ao entrar na oficina meu olhar fuzilou meu ajudante, que naquele momento esboçou um murmúrio de desculpas. Peguei meus documentos e falei que iria ligar para meu advogado. Os policiais se olharam e estranharam. Sem entender o porque da reação deles, perguntei:

- não estou sendo preso?
- e porque estaríamos lhe prendendo?

Pensei rápido e achei melhor não falar mais nada, talvez estivesse querendo arrancar uma confissão ali mesmo.

- não sei! Chego no meu trabalho e tem dois policiais que me pedem para segui-los até a delegacia sem querer explicar nada. O que devo pensar?
- fique calmo senhor, apenas queremos sua ajuda para resolver uma duvida nossa.
- dúvida? Sobre o que?
- na delegacia será melhor explicado. Mas não: o senhor não esta sendo preso.

Pediram para que eu fosse no meu carro que eles iriam na frente. Ao sair na frente da oficina, uma pequena multidão já havia se formado do outro lado da rua, curiosos por saber o porque daquela situação. Dentro de minha cabeça eu já imaginava que aquilo tudo seria o inicio de um terrível pesadelo. Já imaginava as manchetes nos jornais, a surpresa de meus amigos e parentes; a vergonha de meu pai se estivesse vivo.

Segui a viatura que se movia lentamente, talvez não querendo me perder de vista. Chegamos à delegacia e o delegado que logo cedo eu vira na TV me aguardava em sua mesa. Era um sujeito bem alinhado em seu terno preto, barba perfeitamente feita, um grosso cordão de ouro no pescoço e um anel de advogado no dedo, que de tão grande mais parecia uma soqueira. Na parede atrás dele, ao lado de uma foto do governador do estado estavam vários diplomas de cursos, universidades e escolas.

Metodicamente, ele se ajeitou na cadeira enquanto eu estava parado na sua porta, ladeado pelos dois policias. Vagarosamente ele arrumou os objetos em cima da mesa, educadamente pediu um café pelo telefone, ajeitou o terno e só depois de todo esse ritual que pareceu durar séculos, me apontou a cadeira e pediu para me sentar. Confirmou minha identidade e perguntou:

- o senhor sabe por que esta aqui?
- ao senhor, não tenho a menor idéia.
- o senhor poderia me informar onde esteve nos últimos dois dias?

Pronto! Eu havia sido pego! Nada mais a fazer. Talvez eu devesse mesmo ligar para um advogado. Mas resolvi não demonstrar o nervosismo, apesar de estar suando em bicas e gaguejando a cada silaba que falava.

- estive com um amigo, ele pode confirmar!
- e esse seu amigo por um acaso do destino esteve com o senhor na manha do sábado?
- sim, estivemos juntos todo o final de semana.
- o senhor sabe a definição de crime senhor?
- sim, mas o que eu fiz?
- o senhor sabe que existem leis neste país e que é o meu dever fazer cumpri-las?
- sim, lógico que sim, mas o que eu fiz?
- então o senhor deve saber também que é minha obrigação levar os que cometem esses crimes para serem apresentados à justiça, certo?
- gostaria de ligar para meu advogado.
- então o senhor até já tem um advogado?
- Doutor, conheço meus direitos e já que nem sei do que estou sendo acusado, gostaria da presença de meu advogado.
- e o que o senhor vai dizer para ele?

O cerco se apertava cada vez mais, evidentemente ele queria mais detalhes sobre algo que não sabia por completo. Resolvi respirar fundo e respondi:

- que estou sendo acusado de algo que nem sei do que se trata, que fui tirando de meu trabalho e trazido a sua presença para um interrogatório que não tem nenhum sentido!
- então agora o senhor que me ensinar meu trabalho?
- de forma alguma! Apenas gostaria que o senhor me explicasse o que está acontecendo. Só isso!
- ESCUTE UMA COISA – Berrou ele enquanto deu um tapa na mesa que fez voar varias folhas de papel e que me fez engolir seco o que parecia ser uma bola de sinuca tal qual a pressão que exerceu em meu esôfago – EU CONHECI SEU PAI! ELE ERA MUITO AMIGO DO MEU PAI, E SÓ POR ISSO QUE NÃO LHE METO NA CADEIA AGORA MESMO! O SENHOR NÃO SABIA QUE CAÇAR DENTRO DE UMA PROPRIEDADE PARTICULAR É CRIME?
- hãããã??? – fiz uma cara tão de espantando que até ele estranhou
- na manhã do ultimo sábado, o senhor foi visto com outra pessoa não identificada, caçando dentro de uma propriedade particular. A placa do seu carro foi anotada e saiba o senhor que só não vou lhe prender agora mesmo porque por sorte sua, o seu carro ainda está no nome de seu finado pai, e por conhecer ele tão bem não vou lhe dar ordem de prisão imediata! O senhor pensa que está onde? Num puteiro?
- mil desculpas doutor, eu realmente não sabia que era uma propriedade particular. Jamais eu iria entrar na propriedade de alguém sem pedir autorização. Por favor, me desculpe.
- desculpar? Desculpar um cacete! O senhor dê graças a deus que o dono não quis fazer um boletim de ocorrência! Apenas pediu para que eu lhe intimasse para que nunca mais o senhor ponha os pés lá dentro! Quanto ao seu amigo, nem quero saber quem é esse outro cidadão!

Quando o delegado falou sobre ele, senti um pavor tomar conta de mim. E se ele quisesse que eu fosse até a casa dele? O que poderia acontecer se aquele louco me visse chegar com a policia? Sem nem deixar eu me recuperar, o delegado começou a me passar um sermão aos gritos, temperados com socos que dava na mesa. O finíssimo cidadão que a pouco educadamente pediu um café, empoado com toda a dignidade do mundo agora era um carrasco nazista que vociferava em minha direção, arremessando perdigotos que se espalhavam na minha cara. Após tomar o maior esporro de minha vida e prometer nunca mais na minha vida ir caçar novamente, ele terminou a audiência:

- tirem esse filho de uma puta da minha frente! Se eu ver ele de novo por aqui, juro que lhe dou uma surra que quando ele acordar no hospital, vira evangélico no outro dia! Já não bastasse ter que procurar os filhos da puta que atiraram no tarado lá na beira do rio, ainda tenho que dar sermão num cavalo velho desses!

Eu saí de lá me sentindo o pior dos homens, mas lá no fundo eu respirava aliviado em saber que não tinha sido pego por toda a loucura que ocorreu no final de semana. Entrei no meu carro e passei uma boa meia hora debruçado no volante, tentando absorver aquela visita ao distrito. Quando voltei para a oficina, a multidão que estava quando saí se reduziu a alguns vizinhos e amigos. Entrei e expliquei tudo a eles. Foi quando meu ajudante falou que passou boa parte da manhã tentando me ligar para avisar do que estava acontecendo, tentando me contar que o dono da propriedade já tinha ligado na oficina (que ainda usava o mesmo numero de telefone de quando era de meu pai, assim como o carro que mantive no nome dele pelo tempo que deu. Como uma lembrança) para esculhambar com minha cara e para falar que o delegado iria ter uma conversa comigo.. o coitado do meu ajudante estava quase chorando e pedindo desculpas. Respirei fundo e fui me trocar. Pus meu macacão e tentei começar a trabalhar, mas tudo aquilo não saia de minha mente. Passei o dia sem conseguir fazer nada.

A noite, já em casa eu dormi logo cedo pois queria descansar, mas minha mente tinha outros planos...

(Continua)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Minha mão esquerda (04)

O que diferencia um corpo vivo de um corpo morto? Ora! O numero de átomos é o mesmo! Até o peso permanece!

Talvez a diferença seja apenas externa. Na dor dos que ficam, no vazio dos aposentos; na ausência dos sons e dos cheiros.

Talvez a diferença interna ocorra então não no corpo inerte, e sim nos que ainda pensam estarem vivos. Um dia foi dito que “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhares é uma estatística.”.

Caminhar na matéria estando material, pesa e marca com pegadas que ficam impressas no papel da vida. Mas até onde vai essa marca no EU que sai de cena?

Será que levamos mais coisas do que deixamos? Será que levamos algo?

A morte nos toca de formas diferentes, a morte nos leva de formas diferentes, a morte tem tempos diferentes. A morte em nada é diferente!!!

Um corpo morto é exatamente igual a um corpo vivo, pois são apenas corpos.

07/07/2009

Minha mão esquerda (03)

Depois de minha morte eu vaguei pelo pó em que me converti. Definhei da carne até a terra, e enquanto os vermes se banqueteavam, minha consciência teimava em prender-se àquelas moléculas (pois ainda não conhecia a verdadeira morada atômica). Ao pó eu cheguei, e mesmo moído, deglutido e excretado, ainda existia a consciência corporal anterior. Na osmose da terra, minha poeira nadou até a superfície e alçou vôo nos ventos que me espalharam pelos mares, pelos bares; pelos lares. Quanto mais eu me dispersava, maior me sentia.

Na vastidão deste pequeno planeta, por vezes minhas partículas se reencontravam, mas juntas nada formavam. Não tinham mais a liga que um dia as uniam.

Eu fui ao fundo das fossas marianas sentindo a quilométrica pressão liquida que de pó me fez lama submarina. Cavalguei na estratosfera montado nas correntes ascendentes, que de pó me fizeram. Pousei em vulcões ativos que liqüifizeram-me os grãos e do pó fizeram-me rocha. Prostei-me sobre pastos e ingerido por ruminantes, do pó fui feito carne.

Mas foi quando caí nos olhos de uma criança, e em lagrimas fui lavado e expulso, que entendi que a infinitude da matéria encontra seu ocaso quando tem que transmutar-se, para recomeçar a ser uma nova antiga parte do universo. Foi nestas lagrimas que me libertei, deixando apenas as experiências minhas impregnadas (com infinitas outras) na memória de cada átomo que neste plano eu fui

16/06/2009